Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

Carta a Agripino Grieco

Jackson de Figueiredo

Meu caro Grieco:

Li, e li realmente comovido, o que V. escreveu à margem do livro de Hamilton Nogueira, e desejo responder a alguns pontos da sua crítica. 

O livro de Hamilton Nogueira é honra que jamais pude supor me fosse possível alcançar em vida, devo dizê-lo. Mas ele marca também uma hora de inquietude: é para mim a prova de que já empalidece o crepúsculo da mocidade, e o dia que surge dessa manhã da vida, não sei o que será. 

Eis porque devo responder ao seu artigo. 

É claro que, objeto de debate, tal como naturalmente me fez a obra de um amigo, não me cabe responder aos críticos mais ou menos impiedosos que por acaso venham a surgir. Não me ficará bem subscrever elogios ou concordar com descomposturas. Em seu artigo mesmo deverei por de lado tudo quanto só interesse ao meu eu individual. O que eu quero discutir são os seus pontos de vista sobre a minha atividade propriamente católica. E o faço porque V. merece, de modo muito particular, a pública homenagem desta discussão. 

Você, que já me deu mais de uma prova de não conhecer a extensão da estima que há tantos anos lhe dedico, aqui tem mais um testemunho desta estima, que vale muito mais — devo acentuar — do ponto de vista em que sempre me coloco, do que a admiração pura e simples pelo incontestável brilho de seu talento, pela vivacidade do seu espírito, pela eloquência da sua poesia — porque V., sim, é que é, antes do mais, um poeta, um poeta que se fez crítico e até panfletário. 

(E não sou eu quem lho exprobe. O que, mais de uma vez, lhe tenho exprobado, é o excesso, é a diatribe feita a frio, é uma certa tendência, não reprimida, para o profissionalismo do dichote, da maledicência, do dizer mal por dizer mal, com evidente menosprezo de todo senso da medida, ou, pelo menos, de todo o “sentido social”, em sua obra, o que está muito abaixo do que V. é como espírito. 

Eu não acredito, por exemplo, que V. mesmo se sinta dignificado no exercício da crítica quando reduz Barreto Filho ao “eterno Barretinho, etc.”, ou toda a espiritualidade, todo o contido, o discreto ardor de uma alma como a de Durval de Moraes ao tão pouco que V. lhe dá.) 

Este parêntesis mesmo, porém, me encaminha ao ponto em que devo discutir com V. a principal significação moral do seu artigo de domingo passado. 

Porque, a meu ver, o que ele contém de profundamente atual e de profundamente perturbador é a ocasião que lhe dou de balancear, no Brasil, os prós e os contras do que Julien Benda acaba de chamar, na Europa de “a traição dos clérigos”. 

E dentro da absoluta despretensão literária com que estou lhe escrevendo, deixe que reedite aqui o que escrevi sobre a posição do problema na obra de Benda: 

“O clérigo não será somente o letrado eclesiástico ou mesmo leigo, mas, sim, todo homem capaz de atividade espiritual desinteressada. O que, ao fim de contas, é antes restringir que alargar o objeto da sua crítica. 

Afirma Julien Benda — e ninguém o contestará — que, em todos os tempos, houve no seio da civilização ocidental, um escol, uma elite espiritual que, transcendendo, pairando muito além das lutas temporais, atuou intelectual e moralmente sobre os seus contemporâneos pelo exemplo do absoluto desinteresse e a livre e pura defesa dos princípios. 

É o que atualmente não se vê mais, diz ele. 

Homens da Igreja ou não, o certo é que os intelectuais de mais notoriedade nos tempos que correm, são, todos, traidores da própria função de pensar, são todos políticos, todos apaixonados do relativo, todos preocupados do quotidiano, todos em atividade prática e, pior ainda, quase todos — e sempre os mais notáveis — como instrumentos do ódio — ódios de grupo, de nação ou de classe — por isto mesmo mais do que nunca vivos e mais do que nunca generalizados. 

O clérigo, portanto, traiu a sua missão na terra, de onde ser bem provável o aniquilamento da civilização que o criou, na qual o que há ainda de bem positivo e indiscutido é mera “ação do costume, atos feitos por hábito, sem que o espírito reflita o espírito que eles têm”. 

Julga Julien Benda que “se o espírito dos nossos realistas atentasse um dia no que eles são, acabaria por proibi-los.” 

Ora, eu sinto, meu caro Agripino, que, no Brasil, mais do que outro qualquer, incorri eu nos reparos do grande antibergsonista. 

Mas não me julgo sem defesa, e não me julgo porque, tanto a ele como a V. agora, o que tenho a dizer é que a injustiça não me atinge particularmente mas ao próprio espírito da Igreja Católica, de que sou um simples soldado, e nada mais quero ser, como tantas vezes tenho dito. 

E foi por isto que escolhi o caso de Sertillanges como mais característico, para discutir o livro de Benda. 

“O caso de Sertillanges — escrevi, então — é mesmo, à primeira vista, de estarrecer: um homem da Igreja, e dos mais altamente situados nos domínios da especulação filosófica, fazendo a apologia do homem de garras, do herói de “coração duro como o diamante”, vivendo da guerra e para a guerra, fazendo a guerra pela guerra. 

Mas é na facilidade mesma com que é possível a Julien Benda desenvolver a sua tese, que se deixa ver a falha de sua documentação interna, da sua psicologia, enfim, relativamente aos fatos por ele apontados e coordenados como elementos de prova. Pelo menos no que diz respeito ao pensamento católico, à atuação intelectual, à atividade espiritual da Igreja. 

O homem perfeito da Igreja será sempre São Bernardo ou São Francisco de Assis — a especulação ou o lirismo, mas sobre um plano de vida real, de vida humana, de relações eminentemente práticas, eminentemente sociais. 

Logo: não há contrapor a Benda o que, em geral, se lhe tem contraposto. Nem é verdade, por exemplo, que ele pregue a volta à “torre de marfim” por parte do nosso clero. O que o seu livro afirma em relação a católicos e não católicos, eclesiásticos e leigos, é que eles não levam mais ao domínio mesmo da prática o espírito puro, os postulados da moral transcendente dos fatos, aquilo mesmo que muitos chamariam ainda hoje a loucura da Cruz. 

O erro de Julien Benda quanto a nós, católicos, é, pois, só de ordem interna à sua tese. Ele tem uma visão errada, não da Igreja dos nossos dias, mas da Igreja eterna. Ele não sabe ver que os homens que mais altamente a representam no campo da atividade intelectual (um Sertillanges, por exemplo) são homens que se dirigem ao que o filosofismo alemão até a guerra chamava “a totalidade humana”. 

Em tempo algum o heroísmo do homem de guerra, nem a dureza política, repugnou à filosofia católica, cujos maiores representantes, aliás, foram, de si mesmos homens de guerra intelectual, do abrasante Agostinho até Santo Tomás que, com toda a placidez de sua alma, foi o que se pode chamar um reformador. E nem é necessário lembrar os Maistres, os de Bonalds, os Donoso Cortez, em esferas mais próprias de luta. 

A verdade é que todos os heroísmos assim como todos os atos vulgares serão sempre julgados, dentro da filosofia da Igreja, não como fins em si mesmos, mas em relação à verdade superior que os dirige. O ato de guerra, por exemplo, no que ele tenha de beleza como toda a beleza, que, de um ponto de vista filosófico, tem fins em si mesmo. Mas como ato humano, e não só como ato do homem, não em relação ao seu fim imediato, mas, dentro de uma concepção humana da guerra, em relação ao seu fim último. O que quer dizer que no juízo de um Sertillanges sobre um Guynemer, o que há, de fato, é uma hierarquia de juízos, e não se pode compreender o mais alto sem ter em conta o que lhe serve de base; o que há, em verdade, é uma ordem interna (invisível a quem não esteja penetrado do mesmo espírito católico) de que só se deixa ver uma face, ou melhor, um resultado sintético. E se não fora assim, nem seria possível a linguagem escrita ou falada a quem representasse realmente um sistema de ideias fortemente ordenado como o da filosofia clássica ou tradicional. 

Perguntando-se ao cardeal Lavigerie o que faria se lhe dessem uma bofetada na face direita, este respondeu: “Sei perfeitamente o que deveria fazer, mas não sei o que faria”. 

Benda, que propõe esta atitude espiritual à dos que, como Sertillanges, sacrificam às paixões terrestres, o que pede é que saibamos manter, pelo menos, este paralelismo entre a doutrina e o ato. 

Mas o seu engano está justamente em pensar que o que lhe parece o “romantismo da dureza” dos nossos homens da Igreja, não corresponde à pura doutrina cristã. Para nós, católicos, não há como diferenciar o Cristo das criancinhas do Cristo que fez uso do chicote. 

E o que, em verdade, mantém um Sertillanges, é, não um romantismo da dureza, mas a reação eterna do bom senso contra o romantismo da meiguice e da ternura de resultados tão funestos sempre para o gênero humano. 

O que há a afirmar sem medo de errar é que nem todo o mundo tem o direito de dar a face esquerda a quem lhe esbofeteia a direita. É preciso primeiro imitar Jesus pelas plantas dos pés, saber, pelo menos, escolher o caminho a seguir, seguir o seu rastro luminoso. 

Tudo o mais é a covardia a mascarar-se de heroísmo, e é contra essa indistinção que a Igreja se levanta. 

E o que, em relação a nós, parece a Julien Benda uma traição à inteligência pura, não é mais do que preito e homenagem à verdade integral”. 

Eis aí, meu caro amigo, numa página de poucos dias anterior à sua, a resposta que, do ponto de vista geral, devo aos que estranham a minha intromissão no domínio político. 

É que jamais aspirei nem ao puro lirismo sentimental (V., quando me conheceu um poeta, bem poderia ter percebido que eu saíra apenas de uma agitadíssima vida acadêmica, com polêmicas de toda a natureza, com selvagerias e rudezas bem maiores que as de hoje); nem à pura especulação filosófica, à construção de sistemas ou da simples “torre de marfim” da ideação ruminativa. 

Não. O que sempre aspirei foi a “verdade integral”, objetiva, para além de mim, que me dominasse, que me fizesse renascer em espírito, fosse mesmo com absoluto sacrifício do “indivíduo” contanto que me sustentasse a “personalidade”, segundo a distinção tomista. 

Só a Igreja Católica podia dar satisfação a uma tal ansiedade, e, dentro dela, jamais quis ser senão um “condicionado” ao seu ambiente no Brasil. 

Daí você enganar-se completamente quando supõe que eu quis fundar aqui uma sucursal da “Action Française”. 

Não. Se V. se desse ao trabalho de reler o que tenho escrito em relação a Maurras e seu grupo, veria que eu sempre os combati do ponto de vista filosófico. 

Mas nada me impedia que fosse buscar a tão bem montado arsenal da incredulidade, armas que eles próprios punham a serviço da Igreja e sobretudo daqueles que, como eu, entendem que o liberalismo político é o mais daninho dos venenos que corroem a cidade cristã, ou melhor, a força protetora e animadora de todos os instintos de destruição que perpetuamente se levantam contra o ideal de ordem e de harmonia da Igreja de Jesus Cristo. 

Mas o que sinceramente suponho, meu caro Agripino, é que uma tal atitude filosófica, tão respeitadora, pois, das leis da vida, de modo algum me tem impedido de continuar a ser o mesmo poeta, se é que poesia é amar a todas as expressões da beleza real, e até da beleza sofredora do contato com a miséria, o vício, o erro. É a própria filosofia católica quem me ensina que “a vida transborda do conceito”, e é a própria Igreja, que, não tendo ilusões sobre a natureza do homem, me preserva da vaidade de só querer apertar a mão dos anjos. 

Não, ainda uma vez V. se engana completamente quanto à significação da austeridade do meu pensamento. 

O Jansenismo foi, antes do mais, uma atitude prática de quem tentava geometrizar, por assim dizer, as relações da Igreja eterna, da Igreja invisível, com a triste e dolorosa massa humana que a Igreja visível tem a dirigir. 

Pois bem: não há atitude que me repugne mais ao temperamento. Para que um homem morra para mim de modo absoluto, não é preciso mais do que sentir-lhe eu a pretensão de se ter como um “eleito” e ao criminoso mais vil como irremediavelmente perdido. 

Quando V. me vê pregar a inflexibilidade doutrinária, (e, não só eu, o Hamilton Nogueira, por exemplo, a quem V. tanto reprova ou, mais alto, um Maistre, um Bonald, um Veuillot, um Donoso Cortez) não deve confundir uma tal atitude com as de um seco puritanismo de algibeira. 

Não. Nós queremos a pureza de doutrina porque sabemos que são as ideias as geradoras de toda a ação, que não há atividade prática em harmonia com as “leis da vida” se não a informam ideias sãs, ideias verdadeiras, isto é, adequadas aos fins supremos da criação. 

Aí está a seriedade, a extrema gravidade do problema doutrinário. 

Eu não quero, pois, a vida austera, “seca como poeira” de um jansenismo ou de um puritanismo de cordel. Pelo contrário. 

Mas o que não creio é na alegria, na formosura, na graça dos organismos dominados pela modéstia, envenenados, corroídos interna e externamente. “Unidade na multiplicidade”, é o lema eterno, mas a unidade só é possível pelo absoluto respeito à verdade. 

E como ter piedade do erro, quando eu próprio não sou o menos ferido pelo rigor de uma doutrina bem definida? 

Jamais neguei que o primeiro sentimental a quem combato sou eu mesmo, que a primeira imaginação, a primeira sensibilidade a quem corrijo são as minhas próprias. Nem jamais tive combates mais temíveis e mais difíceis do que os travados comigo mesmo. 

E, até hoje, ainda estou mais longe, já não digo da santidade, mas do perfeito devocional, mais longe, digo, do que da primitiva exaltação do meu temperamento. 

Logo, meu caro Agripino, eu próprio sou na prática uma prova de que se pode aliar, sem a menor hipocrisia, a austeridade da doutrina, já não direi a caridade, pois isto transcende do que discutimos, mas o senso da atualidade humana, da “necessidade” das suas imperfeições num sentido puramente histórico. 

Não preciso, pois, fugir ao plano em que se disputam realidades humanas de caráter temporal, para reconhecer o maior valor das que florescem em outros planos da vida. 

Se não conseguir, porém, o tempo e o lazer necessários à elaboração deste ou daquele livro, desta ou daquela obra de inteligência, é que “convictamente” valorizei sempre mais viver integralmente — agir e pensar harmoniosamente — do que, em particular, a qualquer destas feições da existência. 

Não o faço cegamente ou por paixão de qualquer ordem, e muito menos pela paixão do mando ou do poder. 

Pelo contrário: apresentando-me, no cenário da vida nacional, como um doutrinário político, o meu ponto de partida foi o da profunda convicção de que nunca serei vencido, justamente porque até o exemplo de minha derrota é uma lição proveitosa aos que amam ao Brasil cristão, ao Brasil dos Anchietas e dos Nóbregas, mas a quem só o Bispo-mártir de Olinda, nestes últimos cem anos, confirmou na verdadeira fé. 

Eis o que lhe tinha a dizer, de consciência para consciência, o seu velho amigo e admirador de sempre. 

Gazeta de Notícias, 1 de Fevereiro de 1928