Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

Vida de São Gregório Magno

Gilbert Huddleston, Enciclopédia Católica



I. Introdução

Doutor da igreja, nasceu em Roma por volta de 540 e morreu em 12 de março de 604. “Ele é certamente uma das figuras mais notáveis ​​da história eclesiástica. Exerceu em muitos aspectos uma enorme influência na doutrina, organização e disciplina da Igreja Católica. Devemos olhá-lo se desejarmos uma explicação da situação religiosa da Idade Média e, de fato, se seu trabalho não fosse levado em conta, a evolução da forma cristã medieval seria inconcebível. Além disso, uma vez que o sistema católico moderno é um desenvolvimento do catolicismo medieval, do qual se pode razoavelmente dizer que Gregório é o pai. Quase todos os princípios orientadores do catolicismo posterior são encontrados, pelo menos em germe, em Gregório, o Grande”. (F.H. Dudden, “Gregory the Great”, 1, p. V).  

Este panegírico de um sábio escritor não-católico justificará a extensão e a complexidade do seguinte artigo.

II. Desde o nascimento até o ano de 1574

O pai de Gregório era Gordiano, um rico patrício da célebre família Amicia, que possuía grandes propriedades na Sicília e uma mansão na colina do Celio, em Roma, cujas ruínas estão sob a igreja de Santo André e São Gregório. Sua mãe, Sílvia, também parece ser de uma boa família, mas nada é conhecido de sua vida, embora ela seja honrada como santa, sendo sua festa é mantida em 3 de novembro. Por ordem de Gregório, os retratos de Gordiano e Sílvia foram pintados e uma descrição agradável deles pode ser encontrada em “Juán el Diácono” (Vita, IV, LXXXIII). Além de sua mãe, duas tias – as duas irmãs de Giordano – foram canonizadas, Tarsilla e Emiliana. Portanto, Juán el Diácono fala de sua educação como a de um santo entre os santos. Desde os primeiros anos, não sabemos nada além do que a história de seu tempo nos diz.

Entre 546 e 552, Roma foi capturada pela primeira vez pelos godos de Titila e depois abandonada. Então, Belisário deixara ali uma guarnição, que fora cercada pelos godos, mas logo retomada. No entanto, perdera-a em definitivo quando fora chamado a combater em Narres. Tanto a mente como a memória de Gregório eram extraordinariamente receptivas, e tais catástrofes produziam nele uma certa tristeza, que corria em seus escritos especialmente relacionada à expectativa de um fim rápido do mundo. Não há detalhes de sua educação. Gregório de Tours, eminente e santo bispo francês, nos diz que, na retórica, gramática e dialética, ele era tão hábil que era considerado o melhor nestas áreas em toda Roma. Também parece certo que ele passou por algum curso de estudos legais. O ambiente religioso não era o menos importante em sua educação. Ele gostava de meditar nas Escrituras e ouvir atentamente as conversas de seus anciãos, o que o levou a dedicar-se a Deus desde a juventude.

Sua posição social tornou-o um candidato natural a uma carreira pública, logo, certamente passou pelos escritórios subordinados, onde um jovem patrício treinava para a vida pública – equivalente aos estágios modernos. Em 573, com pouco menos de 30 anos, encontrava-se Gregório no importante escritório do prefeito da cidade de Roma, que embora já fosse decadente, ainda era a mais alta dignidade civil da cidade. Portanto, somente após longo período de oração e lutas internas, Gregório decidiu que abandonaria tudo para se tornar um monge, o que aconteceu em 574, provavelmente. Uma vez que a decisão foi tomada, ele se dedicou corpo e alma à austeridade de sua nova vida. Suas terras na Sicília foram doadas para a fundação de seis mosteiros e sua casa no monte Celia tornou-se outro mosteiro sob o patrocínio de Santo André. Neste mesmo lugar, vestiu o capuz, de modo que “aquele que costumava vagar pela cidade vestido com a trabea (veste de gala da Roma Antiga) e brilhar com seda e jóias, agora vestiu roupas miseráveis ​​e serviu o altar do Senhor” (Greg. Tur., X, I).

III. Como monge e abade (574-590)

Há discussões sobre se Gregório e os monges de Santo André seguiram a Regra de São Bento. Barônio e outros negaram-no, enquanto Mabillon e os Bolandistas o afirmaram. A controvérsia é importante apenas em vista da questão do monaquismo introduzida por Santo Agostinho de Cantuária na Inglaterra e pode-se dizer que a posição de Barônio é praticamente abandonada. Durante três anos, Gregório viveu retirado no mosteiro de Santo André, um período em que frequentemente ele aponta como o mais feliz de sua vida. Sua grande austeridade é manifestada por seus biógrafos e provavelmente foi a causa da doença estomacal, com a qual padeceu pelo resto de sua vida. No entanto, logo foi removido de sua reclusão quando, em 578, o papa Pelágio II o ordenou, contra sua vontade, como um dos sete diáconos (regionarii) de Roma. Foi um período crítico para Roma. Os lombardos avançaram rapidamente à cidade e a única chance de salvá-la parecia ser recorrer à ajuda do Imperador Tibério, que estava em Bizâncio. O papa, então, enviou uma embaixada especial a Tibério, nomeando Gregório apocrisiário, ou seja, embaixador permanente no tribunal de Bizantino, cargo que ocupou entre 579 e 585.

Nada podia desagradar tanto São Gregório quanto a atmosfera mundana da corte bizantina, e para contrariar sua influência, ele continuava a vida monástica tanto quanto as circunstâncias permitiam. Isto foi possível porque ele foi acompanhado por alguns de seus irmãos de Santo André, com quem orou e estudou as Escrituras, o que resultou em sua “moral”, os comentários ao Livro de Jó, escritos durante este período a pedido de São Leandro de Sevilla, que conhecera em Constantinopla. Gregório estava muito interessado na controvérsia do Patriarca de Constantinopolitano, Eutíquio, sobre a Ressurreição. Eustíquio publicara um tratado sobre o assunto, afirmando que os corpos ressuscitados dos eleitos seriam “impalpáveis, mais leves do que o ar”. A este, o então embaixador objetou com a palpabilidade do corpo ressurrecto de Cristo. A discussão arrastou-se e tornou-se amarga até que o imperador interveio, chamando ambos os discordantes a apresentar seus pontos de vista diante de um público seleto. Foi decidido que Gregório tinha razão e ordenou-se que o livro de Eutíquio fosse queimado. A tensão das disputas tinha sido tão intensa que ambos ficaram doentes; o santo se recuperou, mas não o patriarca, que permaneceu enfermo até a morte.

Deve-se mencionar o fato curioso de que, a despeito de sua longa permanência em Constantinopla, São Gregório nunca dominou o grego, sequer de maneira rudimentar. Quanto ao objetivo do papa de obter ajuda para Roma, a permanência do santo em Constantinopla foi um fracasso. No entanto, seu mandato como embaixador ensinou muito claramente uma lição que mais tarde viria a dar grandes resultados quando reinou em Roma como papa: que jamais se deveria esperar ajuda de Bizâncio, e que se Roma e a Itália se salvariam, seria apenas com as ações independentes e vigorosas dos poderes locais.

No ano de 585, Gregório foi convocado a Roma e retornou a Santo André, onde foi abade. O mosteiro tornou-se famoso sob seu comando rígido: muitos monges que mais tarde se tornaram célebres saíram desse período gregoriano no mosteiro. Em seus “Diálogos”, podem ser encontradas descrições vívidas do período. O santo passou muito tempo ensinando as Sagradas Escrituras e o Heptateuco. Um jovem aluno chamado Cláudio nas aulas, mas Gregório viu que continham muitos erros e insistiu para que fossem corrigidos e revisados, o que, aparentemente, nunca foi feito, já que os fragmentos que existem de tais obras são espúrios.

Neste período, foi concluída uma empresa intelectual gregoriana grandiosa: revisão e publicação de “Magna Moralia”, ou leituras do livro de Job, escrito em Constantinopla, a pedido de São Leandro. Numa de suas cartas (Ep., V, LIII) Gregório faz um relato interessante da origem de seu trabalho. Foi narrado o famoso incidente do encontro do então abade com jovens ingleses. Esta primeira menção do evento está na biografia de Whitby (c, IX), e toda a história parece ser uma tradição inglesa. Vale ressaltar que, no manuscrito da abadia de São Galo, não aparecem como jovens escravos expostos à venda, mas como homens que visitam Roma por sua própria vontade e despertaram no santo o desejo de vê-los. É o Venerável Beda (Hist. Eccl., II, I) o primeiro a mostrá-los como escravos. A conseqüência da reunião foi o desejo ardente de Gregório de converter o povo inglês. Obteve, então, a permissão do papa Pelágio II para ir pessoalmente à Grã-Bretanha com alguns monges como missionários.

Os romanos não aprovaram a permissão do Papa e pediram, com duras palavras, o retorno da missão. O forte sentimento do povo romano de que Gregório não deveria deixar Roma advinha de sua posição na cidade, a saber, ele era o principal assessor e assistente de Pelágio, para quem trabalhou como secretário (veja a carta do Bispo de Ravenna a Gregory Epp., III, LXVI, “Sedem apostolicam, quam antae moribus nunc etiam honore debito gubernatis”). Nesta performance, provavelmente em 586, Gregório escreveu sua importante carta aos bispos cismáticos de Istria, que se separaram da comunhão da Igreja, sobre a questão dos Três Capítulos (Epp., Apêndice, III, III). Este documento, quase tão longo como um tratado, é um exemplo admirável da habilidade de São Gregório, mas não produziu mais efeitos do que as duas cartas anteriores de da Sua Santidade. Os mensageiros foram enviados imediatamente para trazê-los de volta a Roma – pela força, se necessário. No terceiro dia de viagem, os missionários foram alcançados. Gregório não se opôs à volta, desde que recebesse um sinal do céu para abandonar sua empreitada.

O ano de 589 foi desastroso para todo o império. Na Itália, houve uma inundação sem precedentes. Fazendas e casas foram lavadas pela corrente. O Tibre transbordou destruindo numerosos edifícios, entre eles os celeiros da Igreja com todo o grão armazenado. Além das inundações, veio a peste e Roma tornou-se a verdadeira cidade dos mortos. Os negócios foram paralisados e as ruas ficaram desertas. Os únicos que eram vistos vagando eram os responsáveis pelo recolhimento dos cadáveres. Para completar a situação periclitante, em 590 morreu Pelágio II. Eis o sinal que o santo pedira.

A eleição do sucessor estava nas mãos do clero e do povo de Roma e eles escolheram, sem hesitação, o abade de Santo André. Apesar da unanimidade, Gregório sentiu-se sobrecarregado com a dignidade que lhe foi oferecida. Ele sabia, sem dúvida, que a aceitação significava uma despedida total da vida de clausura que tanto amava, por isso não só recusou-se a aderir às súplicas de seus concidadãos, mas escreveu ao próprio Imperador Maurício, implorando-lhe que não confirmasse as eleições. Germano, prefeito da cidade, destruiu esta carta, enviando, por sua vez, o resultado da eleição. Enquanto a resposta do imperador era aguardada, aquele que viria a ser papa cuidou dos assuntos ligados ao Trono de Pedro, juntamente com dois ou três outros altos funcionários.

A praga continuou sem trégua e Gregório conclamou a cidade para uma grande procissão em sete colunas, que teve início de cada um dos sete distritos da cidade até o encontro geral diante da basílica da Virgem. Ao longo do caminho, os penitentes pediram perdão e remissão da pestilência. O sucesso das súplicas é lembrado hoje no nome de “Sant’Angelo”, dado ao mausoléu de Adriano, pela lenda de que o anjo São Miguel tinha sido visto no topo de um monumento, envolvendo sua espada como sinal de que a praga havia acabado.

Finalmente, depois de seis meses de espera, a resposta do imperador chegou, confirmando a eleição do Papa Gregório. O santo, aterrorizado com a notícia, pensou em fugir. Ele foi levado à Basílica de São Pedro e consagrado Papa em 3 de setembro de 590. A história de sua fuga para a floresta, onde permaneceu escondido por três dias, até que seu esconderijo foi revelado por uma luz sobrenatural, parece uma invenção que é lida pela primeira vez na biografia escrita por Whitby (c-vii) e contradiz as palavras de seu contemporâneo Gregório de Tours (Hist. Franc., X, i). Gregório nunca deixou de se arrepender da eleição e, em seus últimos escritos, há numerosas expressões de seus sentimentos profundos nesta matéria.

IV. Como Papa (590-604)

Restavam quatorze anos de vida ao agora Papa Gregório e, neles, trabalhou o suficiente para esgotar as energias de toda a vida. O que torna suas conquistas mais maravilhosas é a má saúde de que gozou permanentemente. Ele sofreu quase continuamente por indigestão e longos períodos de febre, enquanto o último período de seu pontificado  foi marcado pela tão temida gota. Apesar da gravidade do estado clínico, seu biógrafo, Paulo, o diácono, nos diz que “nunca descansou” (Vita, XV). Seu trabalho como Papa é tão vasto que urge apresentá-lo em seções, mesmo que a precisão da seqüência cronológica seja comprometida.

No início do pontificado, São Gregório publicou seu “Liber Pastoralis curae”, um guia monumental do ofício dos bispos, no qual ele expressa claramente as diretrizes em que estes devem atuar e que resultados devem alcançar. O trabalho, que vê o bispo como médico das almas, é dividido em quatro partes. Ele ressalta, em primeiro lugar, que apenas um especialista médico das almas está preparado para se submeter à “lei suprema” do episcopado. No segundo ponto, descreve como a vida de um bispo deve ser ordenada do ponto de vista espiritual. No terceiro, como ele deve ensinar e aconselhar os que estão sob sua responsabilidade; enquanto no quarto, como, apesar de suas boas ações, ele deve ter em mente sua própria fraqueza porque quanto melhor seu trabalho é maior o perigo de cair na autoconfiança e na soberba.

 Este pequeno livro é a chave para a vida de Gregório como Papa, porque ele fez exatamente o que pregou. Além disso, permaneceu durante séculos como o manual do episcopado católico, por isso sua influência moldou o caráter da igreja e seu espírito se espalhou por toda parte.

V. Vida e obra em Roma

Como Papa, São Gregório continuou a viver de acordo com a disciplina e a simplicidade monásticas. Um de seus primeiros atos consistiu em suprimir todos os servos leigos do Palácio de Latrão colocando clérigos em seu lugar. Como não havia nenhum magister militum que vivesse em Roma, o controle dos militares foi exercido pelo por ele mesmo. As incursões dos lombardos haviam enchido a cidade de uma multidão de refugiados, de cujo sustento Gregório assumiu o comando usando as organizações eclesiásticas dos distritos eclesiásticos, cada um dos quais tinha um diaconato ou “escritório de esmola”. O grão que foi distribuído veio principalmente da Sicília e foi fornecido pelas terras da Igreja. As necessidades temporais das pessoas foram cobertas e o santo não abandonou suas necessidades espirituais, o que nos legou uma miríade grandes sermões. Foi ele quem estabeleceu as “estações” que ainda são observadas no missal romano (ver ESTAÇÕES).

Gregório encontrou-se com o clero e as pessoas numa igreja previamente escolhida e todos juntos foram em procissão para a igreja da estação, onde a missa foi celebrada e ele pregou. Esses sermões que atraíram imensas multidões são geralmente exposições simples e populares da Escritura. O notável é o domínio que o pregador tinha da Bíblia, a qual citava continuamente, bem como o uso freqüente de anedotas para ilustrar o ponto em questão, preparando o caminho para pregadores populares medievais.

 Em julho de 595, reuniu seu primeiro sínodo em São Pedro, composto quase exclusivamente de bispos periféricos e sacerdotes das igrejas titulares romanas. Foram aprovados seis decretos sobre a disciplina eclesiástica, alguns deles confirmando as mudanças já feitas pelo Papa por iniciativa e autoridade própria.

 Ainda há muita controvérsia sobre o alcance das reformas de Gregório na liturgia romana. Todos admitem, porém, que ele fez as seguintes modificações nas práticas existentes:

  • • No Cânon da Missa, ele apresentou as palavras “diesque nostros em tua pace disponas, atque ab aeterna damnatione nos eripi, et in electorum tuorum jubras grege numerari“;
  • • Estabeleceu a recitação do Pai Nosso no Cânon antes da fração da hóstia.
  • • Admitiu que o Alleluia seria cantado após o Gradual fora do período da Páscoa, quando os romanos aparentemente o limitavam.
  • • Proibiu o uso de casulas por diáconos que assistiam à Missa.
  • • Proibiu subdiáconos de participarem das partes musicais da Missa, exceto no canto do Evangelho.

Em relação ao sacramentário gregoriano, muito discutido, e ao ponto ainda mais difícil de sua relação com o cântico simples da Igreja, a autoridade mais antiga parece ser o de João, o diácono (Vita, II, VI, XVII).

Mas não há escassez de evidências da atividade de Gregório como administrador do patrimônio de São Pedro. Em seu tempo, as posses da Igreja atingiram vastas dimensões. Diferentes estimativas dão de 1300 a 1800 milhas quadradas e parece não haver razão para pensar que é um exagero, enquanto a renda que produziram foi cerca U$ 1.500.000 por ano (Números relativos ao longínquo ano de 1909).

A terra estava em diferentes lugares – Campania, África, Sicília etc. – e como senhor de todas elas, o Papa mostrou uma capacidade financeira e administrativa que ainda nos surpreende. Assim como surpreendeu os inquilinos e os agentes, que encontraram um novo dono, ao qual não era fácil trapacear ou defraudar. A administração patrimonial foi realizada por alguns agentes de diferentes níveis e responsabilidades que estavam sob as ordens de um funcionário chamado reitor ou defensor do patrimônio. Anteriormente, em geral, os defensores tinham sido leigos, mas Gregório estabeleceu o costume de nomear eclesiásticos para o cargo. Assim, pode-se encontrar casos em que os reitores se encarregaram de ocupar as sedes vacantes dos bispados e a celebração dos sínodos locais, procedendo contra os hereges, providenciando a manutenção das igrejas e mosteiros, corrigindo os abusos nas igrejas de seus distritos, exigindo o cumprimento da disciplina eclesiástica e até a desaprovação e correção de alguns bispos. Os reitores, porém, eram proibidos de intervir em assuntos de iniciativa papal.

Nas minúcias da administração, nada era pequeno demais para ser levado em conta. São Gregório encontrou tempo para escrever instruções detalhadas. Sua determinação em assegurar que o patrimônio fosse administrado adequadamente é evidenciada no grande número de cartas que tratam do assunto. Como bispo, ele era o administrador de Deus e de São Pedro e seus agentes tiveram que demonstrar que estavam cientes disto. O resultado foi que, sob seu pontificado, as terras da igreja aumentaram de valor, os inquilinos ficaram satisfeitos e os benefícios pagos com uma regularidade sem precedentes. A única “culpa” que lhe pode ser atribuída é que, devido à sua caridade ilimitada, o tesouro foi esvaziado. Mas isso, se fosse de fato imputável, seria a consequência natural da convicção de que ele era o administrador da propriedade dos pobres, para quem ele nunca pensou que faria o suficiente.

VI. Relações com as igrejas periféricas

Como patriarcas do Ocidente, os papas têm uma jurisdição especial. Além de seu primado universal, como sucessores de Pedro e entre as igrejas ocidentais, essa jurisdição se estende muito intimamente sobre as igrejas da Itália e as ilhas adjacentes. No continente, muitas das terras estavam nas mãos dos lombardos, com cujo clero ariano Gregório não estava em comunhão. Mas sempre que ele podia providenciar as necessidades dos fiéis desses lugares, o fazia, muitas vezes juntando-se a eles na diocese limítrofe quando eram muito poucos para ter um bispo. Nas ilhas, das quais a mais importante foi a Sicília, a ordem pré-existente foi mantida. Foram nomeados vigários, que costumavam ser os metropolitanos da província, os quais exerciam a supervisão geral de toda a igreja.

Ele também insistiu na celebração dos sínodos locais, conforme organizado pelo Conselho de Nicéia, e há cartas dirigidas aos bispos da Sicília, da Sardenha e da Gália, lembrando-lhes os seus deveres a este respeito. O melhor exemplo da intervenção gregoriana nos assuntos das dioceses ocorreu na Sardenha, onde o bispo metropolitano de Cagliari, senil e já débil mental, levou a igreja a um estado semicaótico. Um grande número de letras relaciona as reformas introduzidas pelo Papa (Epp., II, XLVII, III, XXXVI, IV, IX, XXIII-XXVII, XXIX, V, II, IX, I, XI, CCII-CCIV, XIV, II).

Sua preocupação com a eleição do bispo, quando se dava uma sede-vacância, é visível em muitos casos e, se após examinar exaustivamente o candidato, o considerava inadequado, não hesitava em rejeitá-lo e ordenar que outro fosse escolhido (Epp., I, LV, LVI, VII, XXXVIII, X, VII). Re (Epp., II, XLVII, III, XXXVI, IV, IX, XXIII-XXVII, XXIX, V, II, IX, I, XI, CCII-CCIV, XIV, II). Quanto à disciplina, era bastante rigoroso, exigindo o cumprimento das leis eclesiásticas sobre o celibato (Epp., I, XLII, 1, IV, V, XXVI, XXXIV, VII, I, IX, CX, CCXVIII, X, XIX, XI). , LVI a; XIII, XXXVIII, XXXIX); a isenção dos clérigos dos tribunais seculares (Epp., I, XXXIX a; VI, XI, IX, LIII, LXXVI, LXXIX, X, IV, XI, XXXII, XIII, 1); e a destituição de todos os eclesiásticos culpados de crimes ou escândalos (Epp., I, XVIII, XLII, III, XLIX, IV, XXVI, V, V, XVII, XVIII, VII, XXXIX, VIII, XXIV, IX, XXV; XII, III, X, XI, XIV, II). Ele foi inflexível ao aplicar os benefícios da igreja, insistindo que outros deveriam ser tão rigorosos como ele estava em providenciar fins adequados (Epp., I, X, LXIV, II, XX-XXII, III, XXII; IV, XI, V, XII, XLVIII, VIII, VII, XI, XXII, LVI a, XIII, XLVI, XIV, II).

Em relação às igrejas ocidentais, a falta de espaço impede uma descrição detalhada da maneira de proceder de Gregório, mas a seguinte citação, mais valiosa de uma autoridade protestante, indica muito claramente a linha que se seguiu: “Nas suas relações com a as igrejas do oeste, Gregório Magno agiu submetendo-as inequivocamente à jurisdição da Sé de Roma. Não só não renunciou a um pouco dos direitos reivindicados por seu antecessor, como fez tudo o que pôde para fortalecer e ampliar o que ele entendia ser apenas prerrogativas do Papado. É verdade que ele respeitou os privilégios dos patriarcas ocidentais e desaprovou a interferência desnecessária na esfera da jurisdição canônica exercida” (Dudden, I, 475).

Sua maneira de se relacionar com as igrejas orientais, particularmente com a de Constantinopla, tem uma importância especial para julgar os eventos subseqüentes. Não há nenhum dado que Gregório tenha reivindicado para a Sé Apostólica e para si mesmo como o Papa, o primado, não de honra, mas da suprema autoridade sobre a Igreja Universal. Contudo, nas Epístolas (Epp., XIII, l), fala da Sé Apostólica, que é a cabeça de toda a Igreja “e em Epp., V, CLIV., diz:” Eu, embora indigno, fui encarregado da Igreja”. Como o sucessor de Pedro, o Papa recebeu de Deus o primado sobre todas as igrejas (Epp., II, XLVI, III, XXX, V, XXXVII, VII, XXXVII). Sua aprovação é o que deu força aos conselhos ou sínodos (Epp., IX, CLVI) e sua autoridade poderia anulá-los (Epp., V, XXXIX, XLI, XLIV). Ele podia ser requisitado até mesmo contra os patriarcas e, por ele, os bispos foram julgados e corrigidos, se necessário. (Epp., II, l, III, LII, LXIII, IX, XXVI, XXVII).

Esta posição, naturalmente, tornou impossível permitir o uso do título de Bispo Ecumênico assumido pelo Patriarca de Constantinopla, João, o jejuador, em um sínodo realizado em 588. Gregório protestou e seguiu uma longa polêmica que ainda não havia sido resolvida quando de sua morte. É irrelevante expor tal controvérsia aqui, mas é importante mostrar como Gregório considerava que os patriarcas orientais estavam sujeitos a ele “como a Igreja de Constantinopla”. Ao mesmo tempo, o Papa teve muito cuidado de não interferir nos direitos canônicos dos outros patriarcas e bispos. Suas relações com os orientais foram muito cordiais, como pode ser visto em suas cartas aos patriarcas de Antioquia e Alexandria.

VII. Relações com o poder imperial

O pontificado de Gregório Magno constitui em si uma época da história papal, sobretudo em sua atitude em relação ao governo imperial de Constantinopla. Gregório parece ter considerado a Igreja e o Estado formando um todo unido que atua em duas esferas diferentes, eclesiásticas e seculares. Sobre esta associação, na qual o Papa e o imperador, cada um supremo em seu departamento, e tendo o cuidado de mantê-los cada tanto quanto possível, diferentes e independentes. Mas houve uma dificuldade: o pontífice sustentou que era obrigação do governante secular proteger a Igreja e preservar a “paz da fé” (Mor., XXXI, VIII), então ele freqüentemente pediu a ajuda do braço secular, não apenas para reprimir o cisma, a heresia da idolatria, mas também para impor disciplina entre monges e clérigos (Epp., I, LXXII; II, XXIX; III, LIX; IV, VII, XXXII; V, XXXII; VIII; IV; XI, XII, XXXVII, XIII, XXXVI).

Se o imperador interferisse nos assuntos da igreja, era política do papa contemporizar o máximo possível, a menos que a obediência fosse pecaminosa, de acordo com o princípio estabelecido em Epp. XI, XXIX; “Quod ipse [imperator] fecerit, se canonicum est, sequimur; se vero canonicum non est, em seno quântico peccato nostro, portamus”. Ao tomar este passo, Gregório certamente foi influenciado pelo profundo respeito pelo imperador que ele viu como representante de Deus em todas as coisas seculares e que devia ser tratado com o máximo respeito, mesmo quando ele parecesse um intruso nas fronteiras da autoridade papal. Por sua parte, também se opôs fortemente às interferências da autoridade eclesiástica em assuntos seculares.

VIII. Obra missionária

Seu zelo pela conversão dos pagãos, especialmente os anglos, já foi mencionado. Foi no pontificado gregoriano que Agostinho de Cantuária foi enviado a onde hoje é a Inglaterra e mudou a história daquele povo. Para ser justo para o grande Papa, deve-se acrescentar que não perdeu, em pessoa, a oportunidade de exercitar seu zelo missionário e dispendeu todos os esforços para reprimir o paganismo na Gália, o Donatismo na África e o cisma dos Três Capítulos no norte da Itália e em Istria. Quanto aos hereges cismáticos e pagãos, seu método era usar todos os meios – persuasão, exortação, ameaças – antes de recorrer à força, mas, se o tratamento mais suave falhava, não duvidava, segundo as idéias de seu tempo, recorrer à força, solicitando a ajuda do braço secular. É curioso, portanto, encontrá-lo atuando como protetor dos judeus; no Epp., eu, XIV, denuncia expressamente o batismo forçado de judeus e, em muitos casos, insiste no direito à liberdade de ação, desde que a lei permita, tanto em matéria civil como no serviço da sinagoga. (Epp., I, XXXIV, II, VI, VIII, XXV, IX, XXXVIII, CXCV, XIII, XV).  Em contrapartida, era difícil impedir que os judeus excedessem os direitos que lhes eram conferidos pela lei imperial, especialmente no que diz respeito à sua propriedade de escravos cristãos (Epp., II, VI, III, XXXVII, IV, IX, XXI; VI, XXIX, VII, XXI, VIII, XXI, IX, CIV, CCXIII, CCXV).

IX. Gregório Magno e o monarquismo

Embora São Gregório Magno tenha sido o primeiro monge a tornar-se Papa, ele não contribuiu especialmente para ideais ou práticas monásticas. Tomou como base a Regra de São Bento e a buscou estabelecer universalmente. Seus esforços foram focados em reforçar e fazer cumprir as prescrições do maior dos legisladores monásticos. Tendeu a modificar levemente o trabalho de São Bento, visando transformá-lo em um relacionamento mais íntimo com a organização da Igreja, particularmente com o Papado, embora não o tenha planejado. Ele estava convencido de que o sistema monástico tinha um valor especial para a Igreja e fez o que estava ao seu alcance para espalhá-lo e propagá-lo. Sua propriedade privada foi dedicada a esta empreitada e muitas pessoas ricas foram solicitadas para ajudar os mosteiros, usando os benefícios de seu patrimônio para tal propósito. Gregório nunca se cansou de corrigir abusos e disciplinas imponentes. As cartas que lidam com isso são muito numerosas para citar aqui: os pontos em que ele insiste são precisamente aqueles, estabilidade e pobreza, sobre os quais a recente legislação de São Bento havia colocado interesse especial. Apenas duas vezes vimos algo semelhante à legislação direta do Papa. O primeiro ponto é a idade em que uma freira poderia ser abadessa, fixada em pelo menos sessenta anos “(Epp., IV, XI) e a segunda o prolongamento do período do noviciado. São Bento havia prescrito pelo menos um ano (Reg. Ben., LVIII); enquanto o Santo Padre (Epp., X, IX) prescreveu dois – e com cautela especial no caso dos escravos que queriam se tornar monges.

Mais importante foi sua linha de ação na difícil questão da relação entre os monges e seu bispo. Há muita evidência de que muitos bispos aproveitaram sua posição para oprimir os monastérios de suas dioceses com encargos, de modo que os monges apelaram para o Papa buscando proteção. Embora Gregório tenha mantido a jurisdição espiritual dos bispos, ele foi firme em apoiar os monges contra as agressões ilegais. Todas as tentativas episcopais de assumir um novo poder sobre os monges de suas dioceses foram condenadas. Por vezes, o Papa emitia documentos chamados Privillegia, através dos quais, restaram definitivamente resolvidos certos pontos em que os monges estavam isentos de controle episcopal (Epp, V, XLIX ;. VII, XII, VIII, XVII, XII, XI, XII, XIII ). Graças a essas ações, iniciou-se o longo progresso que culminou com a passagem do controle das organizações monásticas diretamente ao Papa. A vida monástica não era compatível com o trabalho da Igreja como a cura das almas, a pregação, a administração dos sacramentos etc.

X. Morte, canonização, relíquias e brasão

Os últimos anos da vida de Gregório foram preenchidos com sofrimentos de todos os tipos. Sua mente, por natureza, estava cheia de apreensões e seus contínuos sofrimentos corporais aumentaram de intensidade. Seu “único consolo foi que a morte chegaria em breve” (Epp., XIII, XXVI). O final chegou em 12 de março de 604 e, no mesmo dia, o corpo foi enterrado em frente à sacristia, no pórtico da Basílica de São Pedro. Desde então, seus restos foram movidos várias vezes; o movimento mais recente foi ordenado por Paulo V em 1606, quando foram colocados na capela de Clemente V, perto da entrada da sacristia moderna. Há quem diga que o corpo foi levado a Soissons, na França, no ano de 826, mas outro sustentam que era apenas uma grande relíquia. Beda, o Venerável (Hist. Eccl., II, I), traz o epitáfio em seu túmulo com a famosa frase chamando-o de cônsul de Deus.

A canonização de Gregório aconteceu imediatamente após sua morte, por aclamação popular, e ele superou uma reação contra sua memória que veio pouco depois. A arte mostra o grande Papa vestido com todos os ornamentos pontifícios, com a tiara e a cruz dupla. Seu brasão especial é uma pomba, em referência à conhecida história mencionada por Pedro, o diácono (Vita, XXVIII), que narra que, quando o Papa ditava suas homilias sobre Ezequiel, havia uma cortina entre seu secretário e este, enquanto o Papa permaneceu em silêncio durante por muito tempo, abriu um buraco na cortina e viu uma pomba sentada na cabeça de Gregório, com o bico entre os lábios. Quando o animal retirou o seu bico, o Santo Pontífice falou e o secretário apontou suas palavras; mas quando ele permaneceu em silêncio, o servo olhou pelo buraco e viu que a pomba voltara a colocar seu bico entre os lábios do homem. Muitos milagres são atribuídos a ele, de modo que a falta de espaço impede até o catálogo mais superficial.

XI. Conclusão

Está além do propósito destas linhas tentar elaborar uma estimativa do trabalho, influência e caráter do Papa São Gregório Magno, mas parece justo se concentrar em alguns dos aspectos que indicamos acima. Em primeiro lugar, talvez seja melhor esclarecer o terreno admitindo francamente o que ele não era. Ele não era um homem de profundo conhecimento, nem um filósofo, nem um bom conversador; ele não era um teólogo no sentido construtivo do termo. Ele era um advogado romano, administrador e monge, missionário, pregador e, acima de tudo, um médico de almas e um líder. A coisa mais importante a lembrar é que ele era o verdadeiro pai do Papado medieval (Milman). Em relação ao espiritual, deixou na mente dos homens a impressão, de forma sem precedentes, de que a visão de Pedro era a autoridade suprema e decisiva na Igreja Católica.

Durante seu pontificado gregoriano, foram estabelecidas boas relações entre a Igreja de Roma e as da Espanha, da Gália, da África e do Ilírico. A influência na Grã-Bretanha era tal que Gregório era chamado de apóstolo dos ingleses. Nas igrejas orientais, ele também exerceu a autoridade papal com uma frequência incomum antes de seu papado e até o patriarca de Alexandria se submete humildemente às ordens do Papa. O sistema de apelos a Roma foi definitivamente estabelecido e o Papa vetava ou confirmava os decretos dos conselhos, anulava as decisões dos patriarcas e impunha castigos aos dignitários eclesiásticos quando era justo.

Mas também no campo temporal, a posição deste santo é notável. Aproveitando as oportunidades oferecidas pelas circunstâncias, estabeleceu-se na Itália com um poder maior que o do exarca ou do imperador e alcançou uma influência política que dominou a península por séculos. A partir de então, as diferentes populações da Itália buscaram a orientação do Papa e de Roma, já que a cidade do Papa continuava a ser o centro do cristianismo.

O trabalho teológico gregoriano é menos notável. No que toca ao desenvolvimento dos dogmas, foi importante porque assumiu os ensinamentos dos primeiros padres e o consolidou-os em um todo harmonioso. Não introduziu grandes novidades, novos métodos ou novas soluções para questões difíceis e é precisamente por isso que seus escritos eram uma espécie de compendium theologiae, ou livro de texto medieval, popularizando seus grandes antecessores. Tantas conquistas lhe renderam o título de  “Magno”, ou o Grande; entre as pessoas de língua inglesa, ele seja homenageado como o papa que amava os Anglos de rosto branco e foi o primeiro a ensinar a música dos Anjos.


Fonte: Huddleston, Gilbert. “Pope St. Gregory I (“the Great”).” The Catholic Encyclopedia. Vol. 6. New York: Robert Appleton Company, 1909. 11 Mar. 2018 <http://www.newadvent.org/cathen/06780a.htm>.

Traduzido por Gustavo Quaranta a partir da versão espanhola disponível em <http://ec.aciprensa.com/wiki/Papa_San_Gregorio_I_Magno>.

[Segue abaixo oração ao santo por ocasião de sua festa, a 12 de março, extraída do Missale Romanum, 1943]

OREMOS

Ó Deus, que recompensastes a alma do vosso servo Gregório, quando o introduzistes na celeste bem-aventurança, na vossa bondade concedei-nos, a nós que nos sentimos acabrunhados sob o peso de nossos pecados, sermos aliviados, por suas preces, junto de Vós. Por Nosso Senhor Jesus Cristo.
OREMUS

Deus, qui ánimæ fámuli tui Gregórii ætérnæ beatitúdinis præmia contulísti: concéde propítius; ut, qui peccatórum nostrórum póndere prémimur, ejus apud te précibus sublevémur. Per Dóminum Nosrtrum Jesum Christum.