Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

Voluntarismo semipelagiano (V) – Ainda mais sintomas

Padre José María Iraburu.
Blog Reforma o apostasía, 20.02.2010.


Artigos anteriores desta série:

I. Semipelagianos antigos
II. Versões atuais
III. Sintomas
IV. Mais sintomas

Tópicos deste artigo:

  • Deus não pode te pedir
  • O que custa mais é o mais santificante, o mais meritório
  • A obra mais santificante e meritória é aquela realizada com maior caridade
  • Identificar o grau de virtude e a possibilidade de seu exercício
  • O menosprezo dos fracos
  • Muitos outros sintomas do voluntarismo ainda precisam ser descritos

– Ainda mais sintomas?
– Em uma casa construída sobre uma base torta, tudo está mal: portas e janelas não abrem e fecham bem, o chão é morro acima ou abaixo, e as pessoas cambaleiam enquanto andam, etc. Um horror. É o que acontece na casa espiritual semipelagiana. Tudo nela é mais ou menos torto e mal-entendido. Por isso seria uma tarefa sem fim apontar as inúmeras consequências negativas que isso causa na vida cristã. Então, vou terminar o tema com este artigo, mesmo que resulte um pouco longo.

Deus não pode te pedir. Onde quer que se generalize um pouco na cultura cristã o Deus te pede, não será estranho que, com um pouco mais, se dê lugar o Deus não pode te pedir. Qualquer contradição no pensamento cristão pode esperar-se quando se afasta da verdade católica. As duas atitudes, certamente contraditórias, coincidem na medida em que centram a vida cristã na vontade, na parte humana. Pelo contrário, os católicos reconhecem a iniciativa absoluta da graça de Deus, à qual o homem deve uma docilidade incondicional, que não resiste nem põe nunca limites ao que Deus queira dar em sua infinita misericórdia.

Um bom número de moralistas católicos sabe perfeitamente aquilo que Deus não pode pedir aos cristãos. E elaboram justificativas – conflito de deveres, opção fundamental, mal menor, etc. – que permitam evitar em boa consciência o martírio e a fidelidade a certas normas morais, como as que proíbem a contracepção, ao menos em certos casos. “Vocês são casados há dez anos e já têm cinco filhos. Deus não pode pedir que evitem contraceptivos”.

Outros mestres espirituais – esses, talvez, muito rigorosos – também sabem perfeitamente o que Deus não pode pedir aos fiéis leigos, alegando a secularidade que Ele quer em suas vidas.

“Você é uma senhora secular, mãe de família, com muitas responsabilidades e empregos. Portanto, Deus não pode pedir que faça uma hora diária de oração e menos ainda que pratique mortificações corporais”. Proibido. O diretor voluntarista, e ainda mais depois do Vaticano II, sabe perfeitamente o que é um leigo, e o que Deus pode ou não pode lhe pedir sem prejuízo da sua secularidade. Certamente, com essa espiritualidade, não teríamos a maravilha de uma Concepción Cabrera de Armida (1862-1937), mãe mexicana de oito filhos, fundadora das Religiosas da Cruz, dos Missionários do Espírito Santo e de outras associações para leigos. Ela teve a direção espiritual de Mons. Luis Mª Martínez, Arcebispo Primaz do México, grande mestre de espiritualidade católica (1881-1956). O seu biógrafo, o Pe. Treviño, M. Sp. S., conta: “toda as noites dedicava cerca de duas horas à oração, interrompendo o sono. Gostava de juntar a essa oração alguma penitência, como prostrar-se no chão, com uma coroa de espinhos na cabeça” (Concepción Cabrera de Armida, La Cruz, San Luis Potosí, 1987, 7ª ed., 108). Semelhantes “excessos” só podem ocorrer quando a liberdade do cristão se abandona incondicionalmente à ação do Espírito Santo, que “sopra onde quer” (Jo 3,8).

O que mais custa é o mais santificante, o mais meritório. Isso é falso. Essa convicção leva àquela espiritualidade voluntarista que, ao menos na prática, concentra mais a santificação no esforço do homem (parte humana), que na eficácia intrínseca da graça (parte divina). E seguindo esse caminho, o cristianismo é entendido muito mais como um ascetismo custoso, que como uma alegria, um dom, uma salvação inefável, que se recebe do amor de Cristo, “graça sobre graça” (Jo 1,16). Não poucos batizados vão caindo no afastamento da vida cristã, para finalmente abandoná-la completamente, caindo na apostasia. Já sabemos, sim, que não é possível seguir a Jesus Cristo sem levar a cruz de cada dia. Isto o Mestre “dizia a todos” (Lc 9,23). Mas seus discípulos sabem que este jugo é leve, que pesa pouco, e que nele encontramos nosso descanso (Mt 11,29-30).

A obra mais santificante e meritória é aquela realizada com maior caridade. Eu explico um pouco.

É a caridade que santifica e dá mérito às nossas obras: “somente a caridade edifica” (1Cor 8,1). Sem ela, por mais que eu faça, “não tendo caridade, de nada me aproveita”, mesmo que dê minha fortuna aos pobres, ainda que me entregue às mortificações (1Cor 13,3). Por isso ensinava Santo Tomás que “o mérito da vida eterna pertence, primeiramente, à caridade e, secundariamente, às outras virtudes (diligência, paciência, castidade, etc.), enquanto seus atos são regidos pela caridade” (STh I-II, 114,4).

– As obras feitas com mais amor são as mais livres e meritórias. Santo Tomás continua: “é manifesto que o que fazemos por amor fazemos de maneira soberanamente voluntária; onde se vê que, enquanto o mérito, por essência, exige o ato voluntário, deve ser atribuído principalmente à caridade” (ib.). E a caridade sobrenatural, evidentemente, só pode ser exercida sob a moção do Espírito Santo. É docilidade à graça.

– O mérito das obras não é função de seu sofrimento, mas do grau de caridade com que são realizadas. E quanto maior o amor, menos custam. O princípio de que “o que custa mais é o que tem mais mérito” procede de inspiração semipelagiana, e não é verdadeiro, pois precisamente as obras feitas com mais amor são as que custam menos e as que têm mais mérito. Santo Tomás: “importa mais para o mérito e a virtude o bom que o difícil. Nem sempre o mais difícil é o mais meritório” (STh II-II, 27,8 ad 3m).

É muito difícil para um cristão rico, mas apegado à suas riquezas, fazer uma doação a alguns parentes muito necessitados, porque tem muito pouca caridade. Um cristão muito caridoso, por outro lado, realiza a mesma obra com verdadeira alegria – se não dá mais é porque não pode – e sua obra é muito mais meritória. Aquela pobre viúva do Evangelho, que para honra de Deus e de seu templo, “deu do seu necessário tudo o que tinha, todo o seu sustento” (Mc 12, 41-44), fez isso com imenso amor e facilidade, sob ação da graça. “Deus ama ao que dá com alegria” (2Cor 9,7), porque Deus ama a quem dá com amor, com caridade, sob a moção de seu Amor divino.

– Apenas a caridade mais madura é capaz de realizar as obras mais custosas, mais dolorosas para o homem carnal. Sob a moção da graça, o cristão de grande caridade é capaz de obras impossíveis para outros: dedicar sua vida a cuidar dos leprosos, doar a um familiar a metade de suas próprias finanças para tirá-lo da ruína, etc. Mas fique claro, ao mesmo tempo, que tudo o que é feito na caridade, por mais difícil que seja, é realizado sob a moção do Espírito Santo, que dá a possibilidade, mais ainda, a inclinação, para fazê-lo. E nesse sentido é feito com alegria, mesmo que seja ocasiões com grande cruz. Por isso a vida dos santos é a mais crucificada, a menos custosa e a mais alegre.

São Paulo expressa frequentemente este mistério: “à medida que crescem em nós os sofrimentos de Cristo, cresce também por Cristo a nossa consolação” (2Cor 1,5). “Estou inundado de alegria no meio de todas as nossas tribulações” (7,4). Abunda em alegria, no meio de mil tribulações e trabalhos, porque abunda na caridade a Cristo e aos homens. Em três artigos sobre a alegria cristã, trato mais amplamente desse assunto.

– Por outro lado, a virtude mais cultivada é aquela exercida mais facilmente e com mais mérito. Quando a virtude da castidade, por exemplo, é muito fraca, é muito difícil manter a pureza em pensamentos e desejos, palavras e ações; é uma guerra muito dura. Pelo contrário, quando a virtude (virtus: força) da castidade está muito perfeita, é facilmente exercida nos bons atos que lhe são próprios, mesmo normalmente – normalmente – com alegria. E essa é sem dúvida a castidade mais meritória e agradável a Deus. No crescimento dessa virtude, como em todas, costumam dar-se três fases: quando a virtude é 1) incipiente, há muita guerra; quando está 2) avançada, seu objeto próprio é vivido em paz; e quando está 3) perfeita, exercita-se com alegria. O que realmente seria custoso e repugnante seria trabalhar contra essa virtude.

Identificar o grau de virtude e a possibilidade de seu exercício também costuma ser um sintoma semipelagiano, uma vez que o voluntarismo é sempre quantitativo e operacionista. Acabei de dizer que, em princípio, a perfeição da virtude e a facilidade de exercitá-la caminham juntas. Porém, como ensina Santo Tomás, nem sempre é possível identificar o grau de uma virtude e o grau de facilidade para seu exercício. “Às vezes acontece que quem tem um hábito [virtude] encontra dificuldade em agir e, portanto, não sente complacência em exercitá-lo [como seria o natural], por causa de algum impedimento de origem extrínseca; como aquele que possui um hábito de ciência e padece dificuldade em entender, pela sonolência ou alguma doença” (STh I-II, 65,3).

Identificar sem mais virtude e obras é um erro grave, que causa grandes perturbações na vida espiritual, origina muitos discernimentos errôneos, muitas exortações vãs, muitas correções inoportunas, muitos esforços inúteis e não poucos sofrimentos. O cristão, mesmo vestido com a graça de Cristo, sofre grandes limitações e precariedades. Sabemos muito bem, com Santo Tomás, que “a graça não anula a natureza, mas a aperfeiçoa” (STh I, 1,8 ad 2m). Mas não necessariamente a graça cura a natureza sempre e em tudo, mas, de acordo com o beneplácito de Deus providente, pode deixar que perdurem na natureza graves deficiências, que não são pecado, para que a pessoa cresça em humildade e participe mais da paixão de Cristo. Trato algo mais amplamente deste tema no artigo Santos não exemplares.

Quantas vezes, por exemplo, um cristão muito forte na virtude da esperança pode, no entanto, sofrer depressões profundas e duradouras, decorrentes de traços genéticos ou familiares, condicionamentos educacionais errôneos, causas somáticas ou noites espirituais. Um diretor espiritual voluntarista fará desta doença terrível um diagnóstico claro: “a virtude da esperança falha em você”, o que acabará por mergulhá-lo na angústia e no escrúpulo. O mesmo diretor, se se aproximasse de Cristo no Getsêmani, não hesitaria em dizer-lhe: “menos angústia e mais confiança em Deus, que um santo triste é um triste santo. Alegre esse rosto, que dá pena vê-lo”.

Quantas vezes, por exemplo, um homem com verdadeiro espírito de oração, que por qualquer motivo está passando um tempo, às vezes muito longo, sem capacidade alguma para exercê-lo em atos concretos – refiro-me sobretudo a longos períodos de oração –, talvez tente, como diz Santa Teresa, “atormentar a alma obrigando-a ao que não pode” (Livro da Vida 11,16). E talvez se veja atormentado também, ademais, por um diretor voluntarista: “não se deixe enganar; você não ora porque não quer, porque se esquiva da cruz que às vezes está nela”. Para conquistar clientes, as escolas de psiquiatria deveriam promover campanhas pelagianas e semipelagianas em paróquias, catequeses e grupos cristãos, seja de religiosos ou de leigos. Eles fariam um investimento certamente rentável.

A santa Doutora Teresa entende esses problemas de maneira muito diferente, porque os entende ao modo católico: “embora nos pareçam faltas, não o são; Sua Majestade conhece a nossa miséria e baixeza natural bem melhor do que nós mesmos, e sabe que essas almas já desejam pensar n’Ele e amá-Lo sempre. Esta determinação é o que Ele quer; essa outra aflição que nos damos, não serve senão para perturbar a alma e, se havia de estar incapaz de aproveitar durante uma hora, quanto mais quatro” (ib.). São João da Cruz já dizia que “há muitas almas que pensam que não tem oração e tem muita, e outras que tem muita e é pouco mais que nada” (prólogo da Subida 6).

O menosprezo dos fracos é um dos aspectos mais lamentáveis e prejudiciais do voluntarismo semipelagiano. O voluntarismo despreza as pessoas de pouca saúde física e psicológica, de escassa inteligência e cultura, de caráter mal cristalizado, de instabilidade emocional não superada. E admira simetricamente aos homens saudáveis, fortes, estáveis, firme de caráter. Os juízos temerários abundam inevitavelmente em um ambiente espiritual semelhante: “É um sujeito formidável”, “É melhor deixá-lo: não há nada o que fazer com esse”, “aquele parece muito aproveitável” (ouvi essa frase: uma pessoa “muito aproveitável”). O voluntarismo se envergonha do Evangelho, que tantas vezes mostra a preferência de Cristo pelos pequenos, pelos que não contam nada para o mundo (Lc 10,21; 1Cor 2,26-31). Deixa-os de lado. Não valem a pena. Assim, ao mesmo tempo, deixa de lado a Jesus, que foi “ungido e enviado para evangelizar os pobres” (cf. Lc 4, 18).

Muitos outros sintomas do voluntarismo ainda precisam ser descritos, mas estão mais ou menos incluídos nos já indicados:

Os esforços ativos são aqueles que valem a pena, os passivos não, ou nem tanto. Uma pobreza escolhida santifica; padecida por ruína, nem tanto. – Tudo o que é gratuito, sem esforço, não vale, porque nada custa. Fora, então, a água benta, as novenas, os crucifixos nas casas, as imagens piedosas, e, até mesmo, a Missa dominical!… – Centrar-se na vontade leva necessariamente a uma vida espiritual de humor cambiante, ânimo/desânimo. – A pobreza evangélica, tudo o que é apenas uma túnica, nem ouro nem prata, tanto na vida pessoal quanto nas atividades apostólicas, tem indubitavelmente valores românticos; mas na prática é claro que a pobreza deve ser evitada o máximo possível. – A riqueza de meios é melhor, precisamos ser realistas: quanto mais forte estiver a parte humana, mais o Reino cresce nas pessoas e no mundo. Portanto, revista informativa caríssima de um instituto ou grupo cristão, com estatísticas impressionantes. Liturgia com balões, telões, danças e cantores. Evento da juventude cristã, como um macro-maxi-hiper-super-show profano. Títulos acadêmicos sempre que seja facilmente possível, e se não, também. Etc. Quanto mais e melhor, melhor. – Métodos de oração e de apostolado de segura eficácia (mais ou menos como os “crescimentos capilares”), exercícios de autoajuda, técnicas que melhoram tanto o homem quanto o mundo, que eu não lhes digo. – Lisonja e louvor atormentados da “parte humana”: os jovens (a esperança da Igreja), as mulheres (o mundo será salvo em termos de feminização), os trabalhadores, os teólogos renovadores, a nova pastoral, a família (a família salvará o mundo!), etc.

Todo esse mundo voluntarista é uma miséria e um enorme erro multiforme, que se fecha em grande parte à graça do Salvador. É causa muito suficiente para a descristianização progressiva do Ocidente. Somente um nome nos foi dado no céu, o de Jesus, no qual podemos encontrar salvação, uma salvação pela graça divina (At 4,12).

Reforma o apostasía.
José María Iraburu, sacerdote.


Traduzido por Carolina Silveira a partir da publicação original em castelhano, disponível em https://www.infocatolica.com/blog/reforma.php/1002201243-65-voluntarismo-semipelagiano-4

Nota: esse artigo encerra uma série de cinco artigos sobre o voluntarismo semipelagiano – erro muito bem apontado pelo Padre José Maria Iraburu em seu blog – a qual publicamos aqui com o intuito de expor e afastá-lo dos católicos e apostolados hodiernos, conquanto divirjamos do pe. Iraburu ao tratar os lefebvrianos como cismáticos, como se vê em outros artigos do mesmo blog.