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Voluntarismo semipelagiano (II) – Versões atuais

Padre José María Iraburu.
Blog Reforma o apostasía, 09.02.2010.


Artigos anteriores desta série:

I. Semipelagianos antigos

Tópicos deste artigo:

  • A doutrina da Bíblia e do Magistério apostólico é muito clara
  • Doutrina Católica: a liberdade humana é causa “subordinada”, que se move movida pela graça de Deus, a causa principal.
  • Doutrina semipelagiana: a liberdade humana é uma causa “co-ordenada” com a graça divina.
  • O voluntarismo coloca assim a iniciativa da vida espiritual no homem, e o faz por três causas principais:
    1. Uma má instrução na fé católica.
    2. Um antropocentrismo cultural
    3. Um baixo nível espiritual de sacerdotes e leigos.
  • A operatividade caracteriza o voluntarismo semipelagiano
  • O voluntarismo é tremendamente insano

– A estes voluntaristas também dê muito trabalho, eu não gosto deles.
– Pois tenho grande estima por muitos deles, e lamento que tenham tido deficiências em sua boa formação.

A doutrina da Bíblia e do Magistério apostólico é muito clara: “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15,5). “É Deus quem opera em vós o querer e o executar, segundo o seu beneplácito” (Fl 2,13). “Quantas vezes obramos bem, Deus, para que obremos, opera em nós e conosco” (Orange II, c. 9)… Quando essas frases muito claras são lidas, parece que a realidade que afirmam – outra coisa será a explicação teológica que delas se dê – é evidente: a graça move a liberdade do homem para que ele possa fazer o bem, um bem que ele não poderia fazê-lo sozinho, sem a ajuda sobrenatural de Deus.

No entanto, muitos são os cristãos que ignoram essa verdade tão absolutamente fundamental, e até se admiram e eventualmente se escandalizam quando isso é afirmado de modo explícito. Mais tarde, com o favor de Deus, tenho que expor a doutrina católica com certa amplitude. Mas agora contraponho, de maneira muito breve, a fé católica na primazia e eficácia da graça, e a maneira semipelagiana de entender essas questões.

– Doutrina católica: a liberdade humana é causa “subordinada”, que se move movida pela graça de Deus, a causa principal, na produção da boa obra. Portanto, a liberdade é uma causa real da boa obra, mas não uma causa autônoma, que pode produzir seu próprio objeto, o bem, por si mesma; mas causa criatural, segunda, subordinada, que necessita da moção da graça divina. Pode a liberdade humana, se Deus permitir, resistir à ação da graça, pecar; mas não pode ela sozinha fazer o bem e perseverar nele. A eficácia da graça é intrínseca, por si mesma, não pela cooperação da liberdade humana que, meritoriamente, consente em ser movida por ela. Portanto, se um é mais santo que outro, isso se deve principalmente porque ele foi especialmente amado e agraciado por Deus: o exemplo máximo é a Virgem Maria. Deus ama a todos, mas ama a uns mais que a outros, e não distribui suas graças igualmente. Sabe-se bem que essa doutrina colide frontalmente com o falso igualitarismo da cultura moderna; mas é a verdade da fé católica.

O papa Paulo V ordenou que cessassem as disputas entre dominicanos e jesuítas sobre a explicação teológica desse mistério (1607). E em 1611 informou ao embaixador espanhol que, se a Santa Sé havia suspendido o pronunciamento sobre essa disputa, se devia, entre outras causas, porque as duas partes concordavam “na substância da verdade católica, isto é, que Deus com a eficácia de sua graça nos faz obrar, e nos faz passar do não querer ao querer, inclina e muda a vontade dos homens” para consolidá-la em boas obras salvíficas (Denz. 1997). É o ensino perfeitamente claro de São Paulo: “pela graça de Deus sou o que sou, e a sua graça, que está em mim, não foi vã, antes tenho trabalhado mais que todos eles; não eu, porém, mas a graça de Deus, que está comigo” (1 Cor 15,10). E Santa Teresa do Menino Jesus, grande Doutora da graça, emprega as imagens do “ascensor” e do “pincelzinho” para expressar a obra de Deus em sua maravilhosa santificação pessoal.

– Doutrina semipelagiana: a liberdade humana é uma causa “co-ordenada” com a graça divina.  Os semipelagianos não são pelagianos: admitem a necessidade da graça divina para fazer o bem. Mas entendem que o ato livre (a parte humana) concorre com a graça divina (a parte de Deus), e assim a faz extrinsecamente eficaz na produção do bem. Deus ama todos os homens igualmente, oferecendo a todos igualmente sua graça para fazer o bem, e é o maior ou menor grau de generosidade de cada pessoa humana o que determina principalmente o crescimento na vida sobrenatural. São Roberto Belarmino, S.J., Doutor da Igreja, apesar de ser adversário de certas teses tomistas dos dominicanos, reconhece que esse modo de pensar é inconciliável com a fé católica. E são tantos, às vezes tão bons, que pensam assim hoje!

“Alguns [semipelagianos] pensam que a eficácia da graça é constituída pelo consentimento e pela cooperação humana, de modo que por seu resultado se chama eficaz a graça… e obtém seu efeito porque o humano coopera. Esta opinião é absolutamente estranha à doutrina de Santo Agostinho [e de Santo Tomás], e até onde eu entendo, mesmo estranha à doutrina das Sagradas Escrituras” (De gratia et libero arbitrio I, cp. XII; cf F. Canals, Gracia y salvacíon, Anales de la Fund. Fco. Elías de Tejada, 2, 1996, 13-30).

O voluntarismo coloca assim a iniciativa da vida espiritual no homem, permanecendo a graça na condição de ajuda, de ajuda necessária, sem dúvida – “sem mim nada podeis fazer” –, mas de ajuda. Embora os cristãos afetados por essa atitude sejam frequentemente ortodoxos doutrinariamente – não são pelagianos, nem tampouco são semipelagianos conscientes – em sua espiritualidade prática são incapazes de viver, é impossível, a primazia absoluta da graça divina, a total gratuidade da graça, nem tampouco são conscientes de sua eficácia intrínseca. Não podem alcançar a humildade perfeita e, portanto, a plena santidade. Eles acreditam que seguir mais ou menos no caminho da santidade “é uma questão de vontade”; “querer é poder”, etc. Às vezes, mais que um erro doutrinário, essas abordagens desastrosas são neles um desvio espiritual, devido a três causas principais: 

1. Uma má instrução na fé católica. Apenas um exemplo. O padre Severino González, S.J., em meados do século passado, em uma das coleções mais difundidas de teologia dogmática, rejeita juntamente as doutrinas agostinianas, tomistas e escotistas nessas questões e sustenta que “nenhum sistema que afirme a graça intrinsecamente eficaz pode explicar sua concordância com a liberdade” (Sacræ Theologiæ Summa, BAC, Madri 1953, III, tract. III, tese 33, ns. 313 e 324). Os rapazes daqueles anos não leram esses trabalhos acadêmicos, mas leram não poucos livros (por exemplo, O jovem de caráter, do húngaro Tihamer Toth, 1889-1931) que, se bem me lembro, andavam por aí. Querer é poder. É uma questão de generosidade… Esses livros nos fizeram muito bem, mas também causaram sérios danos espirituais, cujo rastro negativo profundo sempre permaneceu em alguns, por falta da verdade católica. Pai, “santifica-os na verdade” (Jo 17,17).

2. Um antropocentrismo cultural amplamente predominante, não apenas no mundo, mas também nas zonas mundanizadas da Igreja. O humilde teocentrismo que tão profundamente caracterizou a cristandade antiga e medieval foi enfraquecendo muito, como bem sabemos, a partir sobretudo do Renascimento. Desde então, o antropocentrismo voluntarista, inevitavelmente soberbo – ainda que não se trate às vezes de uma soberba pessoal, mas na espécie humana – frequentemente produziu nos últimos séculos um cristianismo falsificado, no qual a primazia da graça é amplamente ignorada. São muitos os católicos que são pelagianos – entre os não praticantes são a maioria – e pensam que ir à santidade está na força natural do homem. Por isso, como não são tolos, não tentam e deixam a vida cristã. E outros são semipelagianos – bastante numerosos entre os praticantes – porque acham que o bem que tem de fazer procede em parte de Deus e em parte, a mais decisiva, é claro, de sua própria vontade livre.

3. Um baixo nível espiritual de sacerdotes e leigos. Entre os cristãos ainda carnais (1Cor 3,1-3), também entre os que tendem fortemente à perfeição, o voluntarismo é geralmente o erro mais frequente, porque se a preguiça às vezes, muitas vezes, os prejudica, todavia a soberba faz neles piores estragos, que umas vezes é preguiçosa e outras ativa, mas sempre tende a colocar a iniciativa no homem, tirando-a de Deus, mesmo inconscientemente. 

Por outro lado, os santos – já provaremos isso – todos professam a doutrina católica da graça, porque todos são perfeitamente humildes. E, como diz Santa Teresa, “a humildade é andar na verdade; e é verdade muito grande não termos boa coisa de nós, senão a miséria e sermos nada; e quem não entende isso, anda na mentira” (Sextas Moradas 10,7). É verdade que alguns santos, no começo, quando ainda eram carnais, andavam não pouco enganados e foram voluntaristas por traço pessoal ou por uma formação incorreta; mas quando, pela graça de Deus, alcançaram uma condição espiritual, todos descobriram a primazia absoluta da graça, caso contrário não teriam alcançado a santidade. A completa santidade se dá na perfeita humildade e verdade.  

Um Santo Inácio, por exemplo, quando se converte em Loyola lendo Vidas dos Santos, dizia a si mesmo: “São Domingos fez isso; pois eu tenho de fazer. São Francisco fez isso; pois eu tenho de fazer” (Autobiografia 7).  Por sua força. Mas assim que ele entra em Deus e na vida espiritual, logo alcança por dom do Senhor um supremo conhecimento da graça. E em seus Exercícios afirma: “Pedir a Deus Nosso Senhor que mova minha vontade e coloque em minha alma o que devo fazer”… (17). “Aqui será pedir graça para escolher o que seja mais para a glória de sua divina majestade e a salvação de minha alma” (152). Por aí vamos melhor. Suas maravilhosas regras de discernimento mostram claramente que, na vida espiritual, a pretensão fundamental deve ser deixar Deus fazer, fazendo o que Ele quer fazer em nós, incondicionalmente.

A operatividade caracteriza o voluntarismo semipelagiano. É verdade que às vezes o semipelagianismo, ao limitar tanto a obra da santificação no esforço da vontade livre do homem, leva o voluntarista a abandonar a vida cristã. Conhecendo bem por experiência aquilo de São Paulo: “Não faço o bem que quero, mas o mal que aborreço. É o pecado que habita em mim” (cf. Rm 7, 15-19), conclui: “se esse é o caminho da perfeição, nada tenho que fazer. Será melhor abandonar o intento”. E confiando-se sem mais na misericórdia de Deus – na melhor das hipóteses – vai do semipelagianismo ao luteranismo protestante.

Mas o voluntarismo semipelagiano normalmente leva cristãos fiéis e praticantes a uma operatividade doentia. Já sabemos, sim, que “a fé, se não tiver obras, é morta” (Tg 2, 17). E não esquecemos as exortações de Santa Teresa: “não, irmãs, não: obras quer o Senhor” (Quintas Moradas 3,11); “vós dizendo e fazendo, palavras e obras” (Caminho de Perf. 55,2 [ou 32,8]). Mas em uma vida espiritual católica – sinergia de graça e liberdade – que sempre dá a iniciativa a Deus e sua graça, o florescimento na santidade sempre passa da pessoa para as obras, do interior ao exterior, com paz e suavidade, embora às vezes com grande cruz. Sob o impulso do Espírito Santo, em grande parte imprevisível, a oração e o exercício das virtudes, o cultivo da pessoa, de seus modos de pensar, de querer e de sentir, a cruz de cada dia, vão fazendo-a florescer nas boas obras, no ritmo estabelecido por Deus, não como indicado pela própria pessoa ou por seu diretor espiritual ou seu grupo: “é Deus quem dá o crescimento” (1Cor 3,7). Existem cactos que, bem regados e cuidados, permanecem espinhosos e feios por um tempo, até que, de repente, dão origem a uma flor maravilhosa.

No voluntarismo, pelo contrário, se produz uma certa subordinação da pessoa às obras concretas. A planta é puxada para crescer mais rapidamente, com o perigo de acabar com ela na mão. O crescimento espiritual é pretendido acima de tudo pela prescrição – pessoal ou externa – de um conjunto de boas obras, muito concretas, cuja realização é frequentemente estimulada e controlada.

Se as obras não forem cumpridas, virão julgamentos temerários (“sou um frouxo; não valho para isso”; “é um preguiçoso; não vale a pena, vamos deixá-lo”; “ele pode, mas falta generosidade”). E se se cumprem, virão julgamentos igualmente temerários (“sou um tipo formidável”; “é um tipo formidável”). Mais ainda. A operatividade voluntarista leva à pressa, que se torna crônica, e ao ativismo, ao mesmo tempo que estabelece limites muito limitados aos tempos de oração (pessoas tensas, comunidades sempre super-ocupadas). Leva inevitavelmente à obra malfeita, mesmo que sua aparência externa seja boa. Quantifica a vida espiritual (duas horas de oração santificam o dobro que uma, evidente). Dá ocasião para escrúpulos com grande frequência. Estabelece metas (“este ano você tem – ou sua comunidade – que atingir pelo menos duas vocações para o Instituto, e uma dúzia de vinculações de leigos”). Controla os resultados pretendidos, com mal desânimo ou com pior satisfação, de acordo com as metas alcançadas. Leva a um normativismo e a um legalismo detalhista, e não adverte que leis e normas sempre indicam obras mínimas, que não poucos voluntaristas tomarão como máximas, contentando-se com seu cumprimento: tudo o que passe daí é para eles exageros. Mediocridade congênita. “O vento [do Espírito Santo] sopra onde quer, e tu ouves sua voz, mas não sabes donde ele vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que nasceu do Espírito” (Jo 3,8).

O voluntarismo é tremendamente insano, tanto espiritual como psicologicamente. Não concebe a vida cristã como um dom constante de Deus, “graça sobre graça” (Jo 1,16), mas como um esforço laborioso incessante do homem. Seus erros e os danos que ele produz em pessoas e grupos são tantos que são indescritíveis. Mas aqui estou eu e, com a graça de Deus, os descreverei. Querer é poder. 

José María Iraburu, sacerdote.


Traduzido por Bruno Costa a partir da publicação original em castelhano, disponível em https://www.infocatolica.com/blog/reforma.php/1002090420-62-voluntarismo-semipelagiano-1

Nota: esse artigo compõe uma série de cinco artigos sobre o voluntarismo semipelagiano – erro muito bem apontado pelo Padre José Maria Iraburu em seu blog – a qual publicamos aqui com o intuito de expor e afastá-lo dos católicos e apostolados hodiernos, conquanto divirjamos do pe. Iraburu ao tratar os lefebvrianos como cismáticos, como se vê em outros artigos do mesmo blog.