Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

Fausto Cardoso e a perpetuação de nosso delírio liberal

Jackson de Figueiredo

Levados à parede pela lógica e sobretudo, pela implacável serenidade com que o Sr. Manoel Villaboim defendeu o ato do governo declarando nula a naturalização do argentino Miguel Costa, não tiveram outro jeito os que, no Congresso, tudo sacrificam a uma pseudo popularidade, que se esparramarem pelo batidíssimo chão, nem por isto firme, da exploração política em torno da anistia… Que ela venha, que ela apareça, e tudo ficará como no melhor dos mundos. A paz já está conquistada. Façamos a pacificação. 

Mas a aquelas palavras contrapôs o “leader” da maioria esta sensatíssima lição: “As perturbações da paz não se fazem somente com armas na mão, com tiros de metralhadoras: manifestam-se também pela paixão revelada nos jornais e no Parlamento”. Esta é que é a verdade pura e simples. Se os revolucionários querem a anistia que é, em última análise, o perdão dos seus crimes contra uma dada ordem política, o que primeiro têm a fazer é renegarem a revolução, é demonstrarem respeito à lei e aos seus representantes, é usarem da linguagem dos arrependidos e dos penitentes, o que pode ser feito com dignidade, com seriedade, com limpeza, sem sabujice, sem indecorosos salamaleques. O que se está a ver, porém, é tudo quanto há de mais contrário, não só ao bom senso, mas a todo e qualquer real desejo de paz honesta e sólida. [A] revolução aí está imperando na chamada  imprensa  popular e da forma mais ostensiva e irritante, insultando, injuriando, caluniando, ameaçando tudo quanto tenha tido ligação, direta ou indireta, com o passado  governo, isto é, com a situação política de que se originou atual, de que esta é, em boa lógica moral, a continuadora. Os elogios ao Sr. Washington Luis… aqui e ali garganteados por próceres da mashorca*… mas esses elogios fazem até vergonha a quem os ouve, tão artificiais, tão deslocados na ordem de ideias,  sentimentos que, todos sentem, refervem e espumejam no peitos desses ambiciosos do poder, reduzidos à atual impotência pelas forças políticas que levaram esse mesmo “admirado e  querido” Washington Luis à Presidência da República… Não. A voz sincera da revolução não é nesses elogios de judeu ou de cigano que se faz ouvir. Ela é sincera, sim, nos seus últimos impulsos, nas suas últimas tentativas de galvanização do ambiente popular, nas suas últimas ilusões de vitória, quando, das colunas da imprensa revolucionária, não poupa ninguém, nenhum ato, coisa alguma que tenha ligação, de qualquer espécie, com o passado governo. 

Como acreditar, pois, que o Sr.  Washington Luis seja o único poupado, ele, que hoje representa a maior e mais séria vitória das forças que apoiaram o Sr. Arthur Bernardes, forças entre as quais o atual presidente já figurava como um dos chefes mais respeitados e mais temidos? 

A mentira, sempre a mentira, a hipocrisia, a insinceridade, eis a que se abroquelam os chefes da mashorca, ao passo que os pequeninos sacrificados por eles continuam a sofrer, e ainda sofrerão mais, arrastados por esses fantasmas de entusiasmo e de patriotismo, a que a imprensa amarela quer emprestar corpo e consistência. 

O que é lastimável, porém, é que os homens que com tanto sacrifício se mantêm na defesa da ordem legal brasileira, não tenham a coragem suprema de dizer à Nação a verdade completa, isto é, que o nosso direito político já não corresponde em fortaleza aos seus embates com a anarquia e o furor das paixões revolucionárias, e que, se precisamos de reformas, é para policiarmos ainda mais o nosso desenfreado urbanismo, centro  de má e permanente fermentação, e já, a esta hora, valhacouto de todas as misérias do mundo, de todos os sem pátria, de todos os renegados, de todos os metecos de outros meios ainda mais envenenados que o nosso. 

Este caso de Miguel Costa, por exemplo, fala bem alto em prol do nosso liberalismo de cordel, mas que se está transformando em excelente corda de enforcar… 

Venha de onde vier a desculpa, seja qual for o valor moral do remédio agora empregado, o fato é que tivemos, a frente de força organizada (dizia-se: a mais bem organizada força nacional) na segunda fronteira moral do país, dado que o Rio Grande seja a primeira, um argentino, um homem que, quando menos seja, é homem de pátria incerta, que ele próprio não sabe o que é, e que vai sendo o que as circunstâncias deixam ser… 

Fausto Cardoso (que não era católico, nem jesuíta de casaca, nem sacristão, nem beato), o ultrarrevolucionário Fausto Cardoso, como todos sabem, teve um dia visão genial da nossa paradoxal realidade política… Foi então que ele exclamou: “Triste sina a desta pátria, vítima do liberalismo!” 

Apelou para a Ditadura, e no foi ouvido nem mesmo por muitos que, anos depois, viriam a ensanguentar, mais uma vez, o país, para realce dessa mesma aspiração. 

Pois bem: ainda hoje, é difícil dizer se Fausto Cardoso tinha ou não razão. Mas, em verdade, “uma nação sem ordem, sem personalidade, sem os atribuo dos povos viris – confiança própria, espírito de empresa, autonomia, coragem” – uma nação em que a liberdade é fundada em “sistemas artificiais, em teorias abstratas”, que se conserva como “um gigante de cabelos branqueados e espírito de criança”, de uma nação assim é difícil dizer o governo que merece, o governo que está pedindo, nas últimas manifestações do seu desejo de viver… 

Mas, se há ainda quem não creia necessário o remédio apontado por Fausto Cardoso – e julgo que neste caso estão todos os que representam a situação dominante – então, o que é preciso é que o demonstrem, não só nas ações de caráter particular, incidentes, como esse forte discurso dos Sr. Villaboim, mas uma ação geral, prática e doutrinária e que alcance, de extremo a extremo, toda a nossa cidadania, toda a nossa atividade política e social. 

Um país que, para parecer liberal, se deixa invadir pacificamente por quem é capaz de atear a guerra no seu seio, é um país suicida, é um fumador de ópio, um organismo que voluntariamente se degrada. 

E só num país assim, o poder parece viver por favor e a mashorca (porque nem revolução se pode chamar a movimentos anárquicos, sem programa, sem ideais definidos) e a mashorca, dizemos, pode ser endeusada, apresentada como única força depuradora e reformadora, e como tal apresentada de todos os modos e por todos os meios. 

Foi o mesmo Fausto Cardoso quem, do país infelicitados pelo liberalismo, traçou este perfil da legalidade pela qual ainda nos batemos, e que é triste, porém, também necessário recordar: 

“A legalidade – dizia ele – se faz o princípio, em nome do qual coação e a anarquia disputam o país, sob uma Constituição que oscila nas alturas. 

“É como se fossemos duas nações, se tivéssemos duas repúblicas, nos dividíssemos em duas entidades: uma de convenção, outro real; uma criada pela razão, outra fornecida pela história; uma fictícia, outra verdadeira. 

“A primeira, a legal, paira no espaço, inerte, imóvel, deserta, como uma máquina sem movimento, uma cidade sem habitantes, um corpo sem carne, sem sangue, sem nervo, sem vida, sem alma. E a segunda, a dos fatos, sem de leve sentir o canto e o influxo da outra, sem as amarras constitucionais em que a pensaram ligar, sem os princípios  jurídicos de que a quiseram brunir, sem as normas morais que lhe traçaram, opões a violência ao direito, e, envenenada de rancores, rola na arena das mistificações sem nome.” 

Eis aí a verdade, que todos estão sentindo, que todos estão palpando e vendo. 

Mas, não haverá remédio contra isto? É claro que há, mas é preciso que, à legalidade ideal dos mashorqueiros impenitentes, saibam os homens que estão no poder opor a legalidade real, viva, vivaz, animada, consciente de si mesma, e, portanto, capaz de adaptar-se às circunstâncias, às necessidades de cada momento, opondo às violências e aos atentados, não só atos singulares, dispares e dubitativos, mas uma ação larga e profunda, una e inflexível, a vontade real de  vencer, de impor-se, de ser o espírito mesmo do progresso e da ordem nacionais. Enquanto vencedores e vencidos de cada momento, homens de poder e rebeldes de toda laia, falarem a mesma linguagem, proclamarem as mesmas aspirações suicidas, as mesmas mentiras liberais, a verdade é que não haverá paz, porque não haverá limites claros, demarcações visíveis entre o campo da ordem e do direito e o das mais incongruentes e inconsistentes paixões revolucionárias. 

Em aparte ao discurso do Sr. Villaboim, viu-se agora o Sr. Assis Brasil dizer alto e bom som que só ele e os que com ele representam a revolução, até hoje não pediram a anistia… O aparte caiu-lhe dos lábios nestes termos: “Toda gente tem pedido anistia, menos nós.” 

Eis aí o que é a revolução no Brasil. Afora  o que há  incrível coragem em afirmar que ele, Assis, e seus companheiros de mashorquices parlamentar não têm pedido a anistia; afora esse traço da característica instabilidade daquele mais que bem dosado pampeiro, o que há de notar é a vaidade da posição conquistada ante uma nação que lhe parecerá perpetuamente bestificada. É a nação, é o povo todo que pede anistia: Os revoltosos, estes não. Estes são um poder em face de outro poder, e o deles é o poder que tem por si tudo o mais que no seja o grupo de ambiciosos que está ocasionalmente no governo… E o governo em que discutir com esses barões, com esses poderosos, cada ato, cada gesto de defesa própria ou de defesa da nação? Tem que desenvolver toda a hermenêutica passada e presente dos nossos tribunais, para conseguir o que? Mais uma ou duas palavras de elogio ao Sr. Washington Luis, e mais vinte ou trinta cargas cerradas de injúrias e doestos contra os que defenderam e defendem a legalidade… 

Não, não há fugir a fazer-se eco da sentida exclamação de Fausto Cardoso: “Triste sina a desta pátria, vítima do liberalismo!” 

Está a parecer, de fato, que ela acabará primeiro (o Sr. Villaboim termina o seu discurso ainda mais pessimista do que eu) acabará primeiro que acabem os bate-bocas liberais. Isto é um verdadeiro delírio.  

Gazeta de Notícias, 20 de Julho de 1927 


* Jackson de Figueiredo costumava dar o nome de “mashorca” à rebeldia militar de seu tempo, da qual nasceram os movimentos tenentistas.