Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

Uma historiadora

Livro “A segunda imperatriz do Brasil”, de Maria Junqueira Schmidt.

Jackson de Figueiredo

Gilka Machado ainda se conserva como o único caso feminino de vocação literária verdadeiramente sensacional, destes dez últimos anos da nossa vida. E o seu domínio é o puramente poético. Com uma ou outra excepção de relevo – uma Maria Eugênia Celso, por exemplo, e a esquecida Laura da Fonseca e Silva – o fato é que a literatura feminina tem sido de uma enorme infelicidade nesta última década da nossa história cultural. Ou a mediocridade mais incolor ou os espaventos de uma inacreditável pedanteria. E, dominando quase tudo, e causa de quase todo esse desastre, uma insinceridade de espantar.

D. Maria Junqueira Schmidt, a jovem escritora sobre a qual ouso agora chamar a atenção dos meus leitores, estava fadada ao que me parecia, a engrossar essa lastimável literatura de frases feitas e lugares comuns de um sentimentalismo mais ou menos livresco, quer dizer, sem o mérito, ao menos, de coisa verdadeiramente vivida.

De educação literária mais esmerada que a comum entre nós, tendo passado na Europa parte da infância e da adolescência, mal chegara ao Brasil enveredara pelos mais falsos caminhos da iniciação sentimental e idealística, em domínios de objetivação, de realização de sua personalidade. Vimo-la, então, em declamações de ordem política, e autora de contos e novelas, de sabor colegial, que só aqui e ali deixavam adivinhar uma natureza, um temperamento realmente poético, isto é, realmente criador.

Pode-se agora falar assim à moça escritora, a quem, os que mais lhe admiravam esses ainda obscuros dotes de espírito, tudo faziam para não levar o esmorecimento de prematuras angústias. E o podemos dizer por isto que, com a publicação do seu úlimo livro “Amélia de Leuuchtengberg, a Segunda Imperatriz do Brasil”, ela acaba, a meu ver, de conquistar um lugar de relevo nas nossas letras contemporâneas, muito para além do que já lhe assinalaram tímidos elogios, se bem que partidos de penas autorizadas na matéria, como a do Sr. João Ribeiro.

A verdade, porém, é esta, pura e simples: D. Maria Junqueira Schmidt encontrou, enfim, o leito natural à sua ideação, a moldura própria da sua tendência ficcionista, o ambiente moral e intelectual em que o seu espírito sabe mover-se com facilidade, graça e fidalguia. Este livro é uma revelação.

A evocação histórica é, já não pode haver dúvida, a expressão normal e perfeita da sua sensibilidade poética. E assim o afirmo porque este pequenino ensaio que é uma estréia, toca, às vezes, os limites da perfeição no gênero, tal a vida, a naturalidade, a meiguice, a ternura com que se derrama por páginas e páginas de reconstituição histórica, o que não seria possível, sem que incidisse em ridículo e artificialidade, se não moderasse tudo, se não dominasse tudo e a tudo desse a feição de obra de arte, uma íntima segurança, um singular poder de equilíbrio.

Em uma ou outra passagem, e sempre incidentes, notar-se-á ainda a “tournure” que chamo colegial. Mas são raras e em nada diminuem o brilhos do conjunto da ficção. Porque nisto está, para mim, o valor da obra e é deste ponto de vista que a louvo quase sem restrições: trata-se de uma obra de arte, de uma obra de história, mas na qual às superstições de detalhes substituí um admirável senso de evocação social e política, uma penetrante luz de abstração psicológica. Quero dizer: a nossa jovem historiadora sabe abstrair da secura dos fatos vistos à distância a paixão do momento, a figura, real, enfim, ou historicamente verdadeira, desse ou daquele personagem e, não raro, também, toda uma paisagem espiritual coletiva, como é o caso daquelas formosas e movimentadas páginas de tristeza, de incerteza, de melancolia e de desilusão sobre a volta de D. Pedro I ao Rio, após a peregrinação de esperança pelo interior do Brasil, e daquelas não menos tristes mas não menos vivas sobre o ambiente que encontrou D. Amélia de Leuchtenberg em Portugal, após a derrota de D. Miguel.

É claro que não fui rever nos arquivos a crônica da nossa segunda imperatriz, tão gentil e tão graciosa, e tão nostálgica, ao mesmo tempo, em meio à varia grandez do seu destino. O seu romance, porém, está feito e não com menos felicidade que o da Marqueza de Santos ou do próprio D. Pedro pelo Sr. Paulo Setubal. E, certamente, com mais fixidez de linhas propriamente históricas e tintas mais discretas, menos arranjadas para o grande público.

A autoria diz numa “explicação” que julgou “necessária” ao seu livro: “Não há nele a mais leve fantasia, nem mesmo uma justificável liberdade de imaginação. Foi elaborado exclusivamente à luz dos documentos, tendo em vista os acontecimentos sociais da época e a compulsação da correspondência íntima, do exame dos quais pude traçar, em linhas rigorosamente precisas, o perfil moral e a atuação política de Amélia de Leuchtenberg, quer na vida agitada dos últimos dias do império no Brasil, quer na fase olímpica da arrancada heroica de Pedro I em Portugal, depois e sua abdicação ao trono do Novo Mundo, quer, por fim, na solidão de sua viuvez, na Baviera, na Ilha da Madeira e no Palácio das Janelas Verdes – em todos esses períodos angustiosos da existência dessa princesa, cujo destino foi um constante contraste com a sua beleza e a sua bondade”.

Quer isto dizer: a tela de uma vida, em cujos planos se desenvolvem, se objetivam também todas as paixões, todos os crimes, todos os heroísmos de uma época, e não só nos limites da vida brasileira. E sente-se, não resta dúvida, que D. Maria Junqueira Schimidt trabalha com a consciência do historiador, manejou, de fato, todos os instrumentos da análise histórica, e não se permitiu uma única afirmativa sem base de documentação. Mas a beleza de seu livro está mesmo neste senso de uma realidade histórica superior à da mais animada “poeira dos arquivos”. Daí não se perder a nossa emoção, toda de caráter romântico, por assim dizer, quando a nossa jovem historiadora, com o mais fino tato feminino, nos deixa penetrar um pouco do que seria o segredo das almas ” que se deviam amar”, por entre as negociações daquele segundo casamento do nosso primeiro Imperador, negociações que são uma tentativa, afinal coroada de êxito, para romper a teia de intrigas do gabinete austríaco.

É com a fantasia e a justificável liberdade de imaginação que ela pode dar vida real àqueles hoje quase apagados vultos do período rubro do nosso romantismo político.

E só louvores merece neste sentido. A respeito de história é não esquecer nunca a lição de Jouffroy: “Les effets seuls tombent sous sa prise; ces effets sont des faits qu’elle recueille, faits de toute nature et de toute espéce, d’ou elle induit les idées, concluant du signe à la chose signifiée ou de l’effet a sa cause”.

Em face do montão de fatos, recolhidos dos arquivos, a liberdade de imaginação poética é sopro de vida, não é fantasia que falseie a realidade. O própria Augusto Conte afirmava que “para explicar leis é necessário vontades”, o que, nota alguém, implica uma tácita aceitação da Providência e do livre arbítrio.

Ora, nesse domínio da história, isto é, domínio próprio da Providência e da liberdade humana, nada mais natural, nada mais adequado que o voo da imaginação poética, para que se alcance uma aproximada visão do conjunto.

Digo mesmo que só tem senso histórico realista, positivo, quem é capaz de adivinhar a poesia das almas e dos corações.

A nossa jovem patrícia deve continuar a sua obra de ressurreição histórica, e levar ao fim a série de trabalhos que nos promete. Teresa Cristina, Isabel e, principalmente, a caluniada Carlota Joaquina pedem, há muito, realmente, os carinhos de uma pena feminina e brasileira.

A delicada e sensata apologista da nossa segunda Imperatriz acaba de se revelar capaz de tomar a si obra de tamanho vulto e de tão alta significação moral, em nossa vida.

Gazeta de Notícias, 25 de Abril de 1928.