Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

D. Sebastião Leme


Jackson de Figueiredo

Um dos últimos gestos de D. Sebastião aos que, anteontem, o aclamavam, na hora de sua partida para o Velho Mundo, foi o sinal da Cruz, dessa Cruz da benção que é sempre, sobre a tela da vida espiritual, a imagem da confiança e da ternura daqueles a quem Deus confiou o tesouro das almas.

Partiu o grande Bispo para o coração da Igreja visível, da Roma de Jesus Cristo, figura da eternidade das suas promessas, último degrau, o mais alto, da hierarquia do mundo, ponto de convergência de todas as  esperanças da terra, centro disciplinador de todas as paixões, regulador de todas as ideias, lugar único, onde a majestade da Ordem e a afirmação da Liberdade se harmonizam e, por assim dizer, se identificam à majestade do homem… 

Partiu o grande Bispo da Eucaristia para junto d’Aquele que representa todas as sãs conquistas do Espírito, e foi um dos seus últimos gestos discerníveis, à distância, aquele tão simples e tão expressivo da sua confiança na fé da multidão imensa a quem tem falado como Pai carinhoso e verdadeiramente cristão, nestes anos de mórbida agitação em nossa vida, nestes anos, os mais difíceis, os mais hostis, podemos dizer sem medo, à ação de uma força puramente espiritual, entre nós. 

E D. Sebastião Leme pode, em verdade, abrandar as inevitáveis angústias da ausência, nessa confiança no povo que, tantas vezes, o tem aclamado em horas de triunfo como nenhum Príncipe da Igreja pôde gabar-se de já ter conhecido em nosso país. 

E é claro que o triunfo pode, muitas vezes, ser uma escola: aperfeiçoar caracteres no amor da luta; aguçar-lhes o senso da esperança; acordar forças adormecidas, crias novas, no coração dos que amam a verdade e o bem, e a quem uma ininterrupta sucessão de derrotas leva, não raro, a perplexidades equivalentes ao aniquilamento. 

D. Sebastião Leme tem sido, de fato, esse guia, esse comando, a quem a Igreja deve, no Brasil contemporâneo, a revivescência do que se poderia chamar o sentimento da sua dignidade pública, o impulso viril, o acordar para a vida no campo da luta, de todos os direitos da consciência católica, da consciência de que somos, em última análise, nós, os católicos, não só os fundadores, mas os legítimos representantes da pátria brasileira, do que, nela, já transcende da pura materialidade. 

Assinalada esta sua atividade rejuvenescente, tanto aqui como em S. Paulo, desde 1905, ainda é a D. Sebastião que devemos – como já o disse uma vez – a verdadeira Magna Carta, definidora desses deveres e direitos da brasilidade, naquela Primeira Pastoral à Arquidiocese de Olinda, de tão fundas repercussões em todo o norte do país, e origem única da tentativa, logo aqui feita, de arregimentação das forças intelectuais católicas, pela primeira vez chamadas, diretamente, pela Igreja, a um apostolado, a que se dava a honra de todos os postos avançados. 

“Desprovida a inteligência, – dizia o grande Bispo – é óbvio que pusilânime e fraca se revele a vontade. 

Só na convicção da ideia está o segredo das vontades decididas e fortes. 

Já a velha filosofia de Aristóteles em um dos seus mais célebres axiomas cifrava a verdade dessa observação: 

Nihil volitum, quin proecognitum

Imaginemos um espírito bem intencionado que nutra sentimentos francamente religiosos. 

Se ele não conhece a natureza, a força e a extensão dos preceitos da Igreja, se não recebeu instrução suficiente para deles ter convicção roborada, explicável se nos afigura que falho se mostre, quando chegar a hora de os cumprir.” 

E se esse era o dever apontado a quantos desejavam a honra de lutar intelectualmente pela Igreja e pelo Brasil – que só com ela pode ser grande e forte – os direitos esquecidos, até aquela hora, ele também os deixava ver claramente através as vibrantes palavras de indignação e de revolta, contra o marasmo que, por toda a parte, se verificava… 

“S. Paulo podia dizer: “Tudo posso n’Aquele que me fortifica”. 

Milhões de fiéis poderiam romper no mesmo grito de força cristã. 

É o que vemos? 

 Ai! Que não… 

Há por aí muito católico que mal se arrasta nos lances mais comuns da vida… 

Um desastre nos haveres, uma morte inesperada, um malogro de ambições é o suficiente para desorientá-los. 

Fraqueza humana, não há dúvida. 

Mas, como pretender que uma Religião entrevista, apenas, possa provocar esforço e centuplicar energias? 

Passemos à ação católica. Que apatia! 

Vejamos os Ímpios. Que entusiasmo! 

Eles têm uma força – o ódio. Mil vezes superior, seria a nossa força – o amor do Cristo. Mas se nós não conhecemos o Cristo! 

Eis o lado fraco. Os nossos católicos, falando em geral, não sabem de Cristo o que é indispensável saber. 

Ils n’aiment qu’á demi parce que ils ne savent qu’á demi.” 

Ele não se temia também da verdade que fere para salvar. Os exemplos são muitos. Foi ele quem abriu os olhos de quem queria ver, para o quadro desolador que ainda não foi completamente substituído… 

“Balda de convicções quanto aos seus deveres religiosos, grande parte dos nossos católicos o é também quanto aos deveres sociais. 

Fácil é verificá-lo. 

Somos a maioria absoluta da nação. 

Direitos inconcussos nos assistem com relação à sociedade civil e política, de que somos a maioria. Defendê-los, reclamá-los, fazê-los acatados, é dever inalienável. 

E nós não o temos cumprido. 

Na verdade, os católicos, somos a maioria do Brasil e, no entanto, católicos não são os princípios e os órgãos da nossa vida política. Não é católica a lei que nos rege. Da nossa fé prescindem os depositários da autoridade.” 

Estas foram as palavras derramadas sobre o Brasil, há mais de dez anos, e que nunca mais deixaram de ter atuação benéfica sobre os espíritos. 

Mas o que dizer da ação propriamente pessoal do D. Sebastião Leme, desde que o velho Cardeal quis dar à sua querida Arquidiocese o brilho novo dessa alma verdadeiramente fadada à reabilitação do catolicismo social em nosso país? 

Não podem falar os filhos espirituais do pai amantíssimo sem incidir na apologia do próprio esforço e da própria dedicação. 

Mas consulte cada um o coração e a consciência e há de verificar, no íntimo de cada um deles, que é de uma pérola de carinho, de bondade extrema, ali depositada pelo chefe inatacável, que se irradiam as melhores energias com que vamos lutando desde 1921. 

Podia, pois, D. Sebastião Leme, ter as palavras de confiança com que se despediu da Confederação Católica, e, no gesto da benção do seu adeus, transmitir a todos nós a força com que fazer desta saudade uma energia nova para o cumprimento dos nossos deveres. 

Nós o sentimos e compreendemos. 

Gazeta de Notícias, 6 de Abril de 1927.