Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

Dias de Barros (Uma fisionomia singular)

Jackson de Figueiredo

Costumo vingar-me, às vezes, das angústias e amarguras, deixando-as crescer à vontade, envenenando-as, fatigando-as com o sentimento da própria liberdade. É como se me deixasse ir, de coração leve, no sentido do sofrimento que se me impõe, e o visse, por fim, morrer ao peso de si mesmo. A separação, a morte, por exemplo, de criatura amada, é o que me fere. Pois faço da saudade o ambiente mesmo em que devo moverme, e acabo por dominar este espaço interior.

Dominar isto, é conhecer, o que é sempre uma libertação, e nem há outra na vida. Salvar-se é, para a própria consciência filosófica, um ato de inteligência.

E, no entanto, desde que tive notícia da morte de Dias de Barros, não há traço de nosso passado convívio, que eu não tenha revivido, ressuscitado, sem que diminua, porém, a tristeza imensa que imediatamente me empolgou.

A Dias de Barros, a quem devi tanto no início da minha vida no Rio de Janeiro, deverei eternamente o maior segredo da amizade, a lição esotérica, por excelência, de quem pôde fazer da amizade a sua religião mais próxima, a face externa, digamos, da fé na imortalidade das almas. Não sei se a frase é dele, mas dele foi que a ouvi já lá se vão quatorze anos: “No mundo moral, duas coisas iguais a uma terceira, não são iguais entre si”. 

E nela está todo o espírito do homem que acaba de morrer: fragmentário, desigual, mas agudo e brilhante. E todo o seu coração também: vario, complicado, desnorteante na sua superfície, mas com riquezas de sabedoria e de bondade em profundezas que nem todos poderiam alcançar. 

*** 

Logo nos dois primeiros encontros que tive com Dias de Barros, na rua, banalíssimos, apesar do interesse que a sua pessoa já, de longe, me inspirava, fiz uma observação, das mais felizes que tenho feito. 

Dissera a mim mesmo que, sob a jovialidade de trato e a palavra encorajadora daquele homem, havia as rudes arestas de um inadaptável e uma grande melancolia. 

Era um carácter, e já é velha a observação, vem de Aristóteles, de que os homens que o têm são quase sempre melancólicos. A verdade, no entanto, é que nem sempre a melancolia é ingênita, e antes se faz maior quando a adquire no sofrimento de todos os dias, o espírito dionisíaco, a alma sedenta de beleza e alegria, árvore frondosa e verdejante que as paixões desgalharam, ferida pelo raio mais de uma vez, batida pelos ventos, mas de pé, fortíssima na garra das raízes, sorrindo na tristeza para a ilusão das aves que ainda desejaria abrigar… 

Assim foi Dias de Barros, uma vida vivida, da qual as energias passionais jamais acharam saída franca do vale de martírios interiores, para esse outro das aspirações políticas, aspirações políticas, que ele alimentara dia a dia com a leitura constante das vidas ilustres, e dos pensadores que mais se esforçaram por traçar caminhos à Humanidade. 

A  complexidade da sua alma avivou-lhe o olhar inteligente para os mais contrários horizontes da ambição que dignifica, mas isto mesmo provocou as lutas mais dolorosas que abalaram o seu eu, e, ajudadas por outras de carácter sentimental, também dolorosas, essas lutas vieram derrubá-lo em muito esforço para o alto, abatê-lo nos propósitos mais justos, empecê-lo nas inclinações mais naturais. 

E o homem social, com mil funções esterilizadoras do indivíduo, no que ele tem de divino ou de perfeitamente natural, há relegado o intelectual que eu desejo esboçar, e a graça, a feição sui generis do ensaísta que ele poderia ter sido, mal se deixou ver nas páginas niveladoras do jornal ou da revista. A cultura de Dias de Barros foi talvez uma das mais vastas e variadas do Brasil atual, e, no entanto, dez muito pouco do que ela foi qualquer das suas páginas publicadas. 

Poucos sabem o fino gosto literário que sempre o trouxe envolvido da poesia dos maiores poetas de todos os tempos, e lhe ensinara a recita o Dante com a rara habilidade de avivar, de iluminar, para quem o ouvia, este ou aquele trecho que o gênio lógico mas misterioso do poeta deixou ao entendimento crítico de outras idades. 

O professor foi, talvez, o primeiro inimigo do intelectual puro, e a política veio depois desviá-lo, ainda mais, desta divina miséria da vida contemplativa. 

Assim, Dias de Barros, que amanhã poderia dar-nos um romance, o seu A vida e os gestos de Marcello Espinola (incompleto até quando esteve em minhas mãos, mas com páginas vivas e audazes, que ficariam), não creio francamente que nos tenha deixado senão esta ou aquela afirmação da sua afetividade, para acudir à necessidades do momento, e talvez o trabalho mais silencioso do mestre. 

Este homem deixa, todavia, uma obra mais extensa do que se supõe, e agora que a recomponho mentalmente vejo que poderá refazer-se aquele vulto endolorido, e tão alto, de Challemel-Lacour, que deixou para a surpresa do que o rodeavam, um livro de que já se disse ser uma das obras primas do pensamento francês, pela sincera expressão de uma vida ainda mais brilhante no que, timidamente, sabia esconder. 

Também jamais me perturbou a sua pretensa irreligiosidade, feita nos anfiteatros desmoralizadores e no convívio de uma geração que creu ardentemente no materialismo e em todas as respostas apressadas e vulgares dos oráculos darwinianos, haeckelianos, etc. 

Nesta questão o descrente sempre fui eu, que sempre considerei Dias de Barros uma alma profundamente religiosa. 

Se as suas crenças não tiveram forma definitiva senão à hora da morte, não me foram desconhecidas bem antes da hora fatal. 

Nietzsche julgou o supersticioso mais crente do que o comum dos crentes e Dias de Barros era um supersticioso do bem, da caridade, do desinteresse. Todos hoje conhecemos a chamada heresia religiosa de Wilfred Monod, que demonstrou ser um certo ateísmo mais religioso do que certos teísmos, e não nos surpreende mais um Seailles tratando das afirmações da consciência moderna, ora falsificar o sentido da política democrática, aristocratizando-a, ora vestir de religiosidade duros conceitos do mais limitado racionalismo. Tudo isto só significa uma coisa: o medo de ficar só, terro de se ver perdido no mundo das próprias meditações, porque a humanidade continua consigo mesma, isto é, eminentemente religiosa, procurando em si própria a mais primitiva e a mais alta idealidade, que a suspenda da terra, que a recompense de tantos martírios e decepções tamanhas. E o sábio, de entre as paredes do seu gabinete e as fileiras dos seus livros, sente o impossível de matar o passado, de matar o morto eternamente vivo, e, sentindo, pela vez primeira, o valor moral da tradição, compreendendo que as letras novas das novas tábuas são tinta nova sobre letras velhas, e que isto não deixará nunca de ser assim, porque ninguém deseja as incertezas de um caminho novo, que todos sentem não ser o nosso, volta também os olhos para trás e procura, dentro dos círculos traçados pela sua razão para uma existência mais inteligente da humanidade, caricaturar as normas eternas. Até aí a má compreensão que falseia. Mas ainda há a boa compreensão que se esconde por preconceito de classe ou de educação, por uma destas superstições sociais tão comuns hoje em dia. Tal foi o caso de Dias de Barros. O que para mim é verdade é que ele se desconheceu em muitas regiões da sua alma, até que o sofrimento final lh’as revelou nitidamente. 

Não encontrei ninguém até hoje com uma memória afetiva tão extraordinária e tão lúcida, o que o trazia preso constantemente, não só à ideia de uma pátria maior, mas também ao sentimento particular da sua terra natal, e isto é como um complemento moral na vida religiosa de todo homem superior. 

E por isso era ainda maior a minha admiração quando o ouvia a recordar coisas pequeninas, visões extravagantes, traços  curiosos da nossa vida social, ou, ele que durante tantos anos śo respirara o ambiente de uma grande cidade cosmopolita, evocar o nosso torrão natal irritantemente humilde, esquecido mais que outro qualquer do norte brasileiro. 

Em Dias de Barros este fenômeno intelectual e afetivo tinha as proporções de uma primeira vida, perfeitamente limitada, que se não ligava quase à segunda, à do expatriado. Nele vim encontrar Sergipe sempre tão vivo, tão pitoresco, tão natural, que dele mais aprendi do que ensinei da nossa terra comum. E mais de uma vez (tão lento é o progresso naquele ninho de estudiosos), apesar de uma diferença de tantos anos, ouvindo-o da sua infância, das suas primeiras leituras, dos tipos que o rodearam, da cidade que se ia fazendo aos poucos, baixa, retangular e comum, mas de luares inesquecíveis e melancolias à beira rio, vi também, com saudade, levantar-se o fantasma da minha infância, que era de ontem, em relação à  sua, mas aidna assim tão longe, e separada de mim por mares e desertos… 

Esse dom da retrospectividade só pode existir em grau tão elevado numa alma profundamente religiosa, numa alma para quem todas as coisas da vida, as mais humildes e as mais vulgares, têm, como deve ser, o valor divino de uma relação com a eternidade, o que foi, o que virá, mirando-se por instantes, no cimo do presente. 

Esta memória dos tipos e das coisas deu-lhe um alto poder de diferenciação, este sentido de que Palante fez medida da superioridade humana, porque saber distinguir da massa geral é estar acima dela, e isto é um grande passo para a estima dos melhores, para a amizade que fortifica o indivíduo. Só neste asilo o homem foge ao falso espírito de uma sociabilidade que disfarça sempre a mais acirrada, a mais triste, a mais fatal concorrência, em que o inimigo tem, protegendo-o, a couraça terrível da mais risonha indiferença. 

A vida de Dias de Barros teve, assim, algo de um culto, e muitas vezes de uma escola de sacrifício, pelas suas admirações e afinidades. Alves Guimarães, Francisco de Castro, Chapot Prévost, bastam estes, para lembrar nomes mais em destaque, foram homens que lhe mereceram, constantemente, lembrança carinhos e cuidados defesa. 

Esta qualidade preciosa de saber admirar fê-lo o ensaísta que compreendeu o que podemos chamar a reforma ou melhor, a renascença do gênero biográfico, que teve como iniciador genial o tormento divino de Carlyle. 

Francisco de Castro lhe mereceu o primeiro destes trabalhos, aquele a que deu o agasalho carinhosos do livro, e naquelas páginas de justiça à memória do grande brasileiro, vemos claramente o médico esquecido da medicina, repetidas vezes, porque o espirito do homem – o espíritos que se não deixa rotular – solta as asas, rompe os horizontes, e pousa ora na paisagem melancólica de uma alma, ora à sombra feliz de uma recordação. 

Por isto o cientista procura as primeiras influências sofridas pelo carácter do biografado, mas a poesia de que a sua alma está cheia ressalta numa explosão de saudade, e é a nostalgia quem nos fala com uma voz em que se adivinha a repressão das lágrimas sinceras… 

“Aos demais, a topografia da capital baiana – dizia ele – a debruçar-se sobre o vasto lençol marinho de sua enseada, dum verde único e inesquecível: seus bairros antigos de um sabor arcaico e francamente colonial, mormente aquele em que tem assento a Faculdade; um céu cujo azul indefinível e duma transparência admiráveis, lembrando antigas faianças a mirar-se nas águas rumosas do seu porto; os misticismo e o encanto peculiares aos hábitos de sua população, depositaria dos sonhos e anseios de uma raça infeliz e exilada, cuja nostalgia desabrocha no eterno devanear dos seus mestiços, frutos de ignotas origens, e outras influências  ainda, tudo arrastava ali a  vida escolar e a população inteira àquela boemia disfarçada, peculiar aos filhos daquela terra incomparável, cujo povo, por sua tendência ao livre exame, por sua eloquência nativa e pela satisfação que encontra na vida ao ar livrem lembra e sugere o antigo viver dos gregos, cujos  estádios, cujos teatros e o Agora tinham por teto um céu de anil.” 

Cidade admirável aquela, também das minhas saudades, cidade batida de sol e de horizontes tão largos e profundo que poderiam criar uma pátria de Navegadores e Heróis da Descoberta, se a terra, em que pisam, não estivesse, ela própria, ainda a conquistar. 

Mas não será nunca superficial a influência daquele meio na alma que ali se deixou embalar pelo sonho ardente de uma vida em que a sensualidade e o misticismo de tal forma se misturam fazendo uma só atmosfera, ao mesmo tempo enervante e animadora. Ela acalenta as preguiças do corpo mas dá forças às asas do espírito. 

De lá trouxe Dias de Barros recordações que se não apagaram, hábitos que não o abandonaram, e eis porque tão fundo lhe trabalhou o carácter o amor da tradição brasileira, que só na Bahia existe ainda pouco combatido por  elementos estranhos  à nossa nacionalidade. 

Conheço de entre os inéditos seus, que há tempos me confiou, uma novela em que se desenrola um fato real da sua vida acadêmica, e em  que o protagonista, eu amigos, se arrasta aqui no Rio numa surda caminhada para a morte, após um período de brilho em que se irmanaram a mocidade das Escolas e a mocidade literária  da Bahia, produzindo naquela terra de oradores e poetas, uma cultura esquisita de  tipos os mais irregulares, os mais curiosos… 

Quem ali viveu, com olhos de ver, fica, de fato, assim, para o resto da vida, com este amor às fisionomias interiores, ao que o homem tem de menos forçado por imperativos de imitação, e  mais da essência do seu próprio eu, e acaba, se tiver a fácil irritabilidade da memória artística, tal como Dias de  Barros tinha, um retratista exímio, que não esquece o traço mais escondido, que vem a ser, muitas vezes, o mais próprio, o mais característico de uma dada personalidade. 

Assim, nas páginas do seu ensaio sobre Francisco de Castro, o que mais me impressiona não é o seu conhecimento científico, que terá feito a sua superioridade de médico e professor, nem mesmo a amostra da sua avultada cultura geral. O que me enleva é, sobretudo, a documentação humana, a figura tão bem delineada de Francisco de Castro, como um gigante esmagando um mundo de pigmeus e invejosos, natureza bárbara num grego, casando assim duas almas, a de um intelectual de olhos serenos e aprofundadores da existência,  e  a de um homem novo, capaz de enfrentar e orientar as correntes mais desencontradas que se batiam para a construção, em solo revolto, de uma parte importante do edifício sui generis da nossa civilização. E em redor desta figura, de mais alevantada humanidade, deu-nos Dias de Barros, fazendo um histórico de Medicina no Brasil, dezenas de outras, todas vivas, desde a do grande Torres Homem, “o luminar, o oráculo da medicina escolar, tipo de observador perspicaz, de inteligência notável  e o mais infatigável trabalhador que já viram as gerações acadêmicas”, cheio, entretanto, de crenças  que o Barros julgava absurdas, até a daquele Claudemiro Caldas ” um talento de escol perdido para a ciência”. 

Quem assim se interessa tão vivamente pelos homens, acaba conhecendo-os profundamente, tendo em si mesmo uma placa de maravilhosa ressonância, que faz ouvir o som particular à têmpera de cada carácter. 

Quem assim dotado não poderá nunca ter as securas da isenção, mas o seu partido nem sempre será o da virtude como a entende o seu vizinho… 

Será antes o sábio que perdoará sempre, mas “vive” tanto os defeitos como as bondades da espécie… 

E é isto que nota logo quem lê o que deixou escrito sobre o espírito um tanto esfingético de Joaquim Murtinho. 

Neste perfil de Um antigo, Dias de Barros deixa à mostra todas as suas qualidades de homem e de escritor, e ao psicólogo coube surpreender-nos mais de uma vez com a sutileza com que ousava levantar o céu de lenda em que a imaginação popular envolve sempre os seus homens representativos. E esta é a função principal do historiador. Mas se este é também um filósofo, isto é, um amigo dos homens, se tem a consciência do que são as necessidades de uma pátria, a que é preciso todo um mundo de símbolos que lhe deem o ideal de uma vida mais nobre, então fará como Plutarco, a poesia das grandes almas, mostrá-las-á irmãs da humanidade inteira, como todos os seus sofrimentos, lástimas e pequenezas, mas ainda assim, soberanas e heroicas, trabalhando conscientemente os valores divinos da espécie. 

Pouco lhe importará a voz irritante das ciências que descrevem as vias subterrâneas por onde andam juntos, tateando o acidente, o crime e o heroísmo. 

A verdade, resumiu-a Remy de Gourmont: ide aos bastidores da vida vulgar do mais vulgar dos homens e encontrareis o que fostes encontrar atrás da heroicidade e do gênio. Só o desinteresse o salva de que a análise científica o traga na e à família, para a praça pública… 

Assim me sinto bem ao lado de quem evoca o vulto grandioso de Fabio Maximo, a viva encarnação da perseverança romana, para um paralelo com quem, entre nós, soube vencer e beneficiar à custa de perseverança e indiferença. Entretanto, o ter chegado a tão alto, não impediu que ao escritor guiassem as mãos suaves da cisma, até à entrada do romance íntimo, que ali estava interrompido pela morte… 

Quando escreveu sobre Joaquim Murtinho, foi a  sensibilidade do artista o que avivou no historiador o amor da verdade, e por isso, primeiro que nos fale da vida cotidiana daquele homem e dos fatos principais que a  abrilhantaram, ele pinta-nos a sua própria posição de espectador  de uma agonia: “E repassava, involuntariamente, numa como obsessão, os pontos limítrofes da sua  vida inteira, da sua cheia e ampla existência: a sua infância tão fugaz nos gozos que essa idade proporciona, e tão cedo privada dos carinhos da sua terna Mãe, e o término último dele: o fulgor, o brilho excepcional de sua vida política e social, através o braseiro candente da crítica acerba, cruel e injusta, de que fôra vítima superior, pela indiferença olímpica com que a arrostara, sem vacilar, sem protestar, como se as não percebesse… 

“E aquele homem tivera uma infância, e aquele homem de natureza calma, calculadamente fria, metálica  até, no conceito da opinião, tivera um romance de amor em sua vida, bem diverso esse daquele que ora se vai propalando, e fôra também amado por mulheres de vária sensibilidade, ele que nos quis sempre dar a impressão de haver-se despido da sua, quando na realidade a tinha vibrátil, e, talvez, exageradamente primitiva… 

E após ter lido toda esta página em que à admiração e à amizade  se alia uma soma tão forte de bom senso, e uma visão tão aguda daquela complexidade que se fizera simples dentro da fórmula que, só, aparecia, vim a relembrar uma outra impressão minha, já distante, quando coube a Lichtenberger despir ante os meus olhos a figura de Bismarck do quanto de inumano lhe emprestava a minha imaginação, revoltada contra a frieza assassina de um ataque à pátria espiritual de quase todos nós, intelectuais do Brasil. 

Uma das coisas que mais contribuíram para a amizade que nos ligava, a mim e a Dias de Barros, foi com certeza este poder de me levar ao meu próprio passado, quase sempre relembrando fatos da sua vida, suas leituras de criança, que foram também as minhas, seus primeiros tormentos, iguais aos meus, ante a agitação e a concorrência de interesses que nos assombram, às primeiras passadas no terreno da vida prática. E de tal  forma se identificaram os nossos sentimentos que, muitas vezes, fazendo um mundo só  dos mundos um pouco distantes das nossas mocidades, ao ouvi-lo, na ressurreição de uma cena, avivar lembranças da sua vida  morta, como diriam os Goncourts, iludia-me aquela sensação do “já visto”, do “já sentido”, tão bem estudada por Grasset e confirmada por Gregh, Paul Bourget  e outros, mas aqui complicada pela existência de uma pessoa mais, com o dom  sugestivo  de uma viva nostalgia reconstituidora,senão  o fato para mim, pelo menos do meio espiritual em que ele se objetivara. Eis porque em toda a sua obra literária, que  não é muito pequena, mas, sim, muito incompleta, se lhe reconheço qualidades de evocador, que poderão ser apuradas, como na novela que esboçou O incesto do Rei, e onde a sua imaginação prendia-se às coisas do Oriente, o que mais me agrada, do que escreveu, são, além das que de seus “diários” pude ler, as páginas de seu romance, A VIDA E OS GESTOS DE MARCELLO ESPINOLA, espécie de autobiografia, penso eu, e onde estão apanhados tipos diversos com que lidou, homens nossos em evidência, gente dos nossos dias, vencidos e vencedores do meio. Um capítulo há, sobretudo, que é a pintura amargurada do mal estar, da falta de confiança que nos invade, a todos nós sem outro valor social que a curiosidade que inspiramos. Marcello faz, e contente porque o faz, uma visita a Elvira, criatura de singular beleza de espírito brilhante, que, sobre o mundo das elegâncias cariocas, tem uma espécie de ditadura à maneira de Péricles, que não pesa pela graça do seu mando, pela habilidade voluntariosa com que age entre exigências tão opostas. 

Em meio daquela atmosfera de luxo, de ditos indiretos, de subentendidos, de ironias quase licenciosas, onde os tipos que se destacam são precisamente os mais diferentes dele, Marcello, pouco a pouco o desgosto lhe vem, e quando já na rua, análise é cruel, toda desfavorável a si mesmo, à sua intrusão onde nada o podia recompensar, nem as suas ideias, nem os seus hábitos mais queridos. 

E a frase sai ao escritor, quase sangrenta, com um vigor bárbaro, às vezes, que o distancia, não do verdadeiro artista, mas do artista que se completou, desviado para um terreno mais positivo da vida; há nela uma crispação de sofrimento e de revolta que também o deixa longe da sabedoria que, algumas vezes, se me afigura a coragem dos tímidos. Mas o que aí está presente é a vida, a vida sempre tormentos, sem piedade, de faces mil, enganando sempre, desiludindo sempre, estragando, vencendo reduzindo a pó. 

E é o que mais me aproximou sempre de Dias de Barros. Ele foi um homem que não fugiu à inquietação, que não abandonou a luta, que esteve no meio dela, sempre alerta, fortificado na sua melancolia pejada de sonhos, sabendo, tendo a consciência de que a felicidade é um sonho vão, mas batalhando pelo sonho, procurando viver a vida toda, todas as suas auroras, seus crepúsculos, e até as noites em que os astros vacilam e tudo ameaçam na luta com as trevas misteriosas… 

De umas notas sobre Dias de Barros, ainda colho umas tantas fagulhas de seu inquieto espírito de observador e de meditativo. Arrancara-as de páginas antigas de seu DIÁRIO, obra que não sei se poderá ser publicada em meio ainda tão restrito como o nosso. 

Era aqui como que um perdão lançado à sua própria falência na objetivação da obra superior que nos poderia ter dado: 

“Para ser sempre novo, atual e contemporâneo de todos, não há nada como se não produzir coisa nenhuma, tal como essas inveteradas coquetes que para conservarem o frescor da mocidade se privam do riso, a mais adorável manifestação da mocidade do espírito”. 

Depois o que observara do próximo contato com um suicida: 

“Dada a existência da causa geradora das emoções, sobrevém, primeiro, a tempestade física. A causa inicial é sempre algum motivo justo ou suposto tal, que engendra a cólera ou a tristeza. A cólera pode ser engendrada por uma encrespação de ciúme, e a tristeza consequente a considerações relativas às dificuldades da vida. Após a causa inicial sobrevém, disse, a tempestade emcional: é toda uma série de ideias enevoadas, de imagens surgida  da  brumas do passado, coo escolhidas pelo crivo da consciência mórbida, porque somente afloram as recordações tristes, as ambições não satisfeitas, os anelos de amor não  saciados, as esperanças falhadas e toda a série de ideias deprimentes que possam surgir em derredor destas. Aos poucos, como uma vasta rede que fosse sendo colhida, essa tempestade emocional parece ir cessando. À delinquência final do carácter, à desmoralização da consciência, nesse tresloucado galope, abatido o ânimo, como que surge das profundezas do ser, repontando como um cone no interior de uma cratera, a vontade que se reveste de fria calma, em derredor dessa ideia exclusiva: morrer! É o mono ideísmo absoluto. Nada vê além do objecto que tem, no momento, diante dos olhos, o suicida! É como se não houvesse cérebro senão para ver. Há uma parada completa de ideação. É o cairel, é o limite final além do qual, ou a morte ou, se algum acontecimento imprevisto chama o enfermo à vida real, o retorno à vida, mas uma vida periclitante, crepuscular e vacilante como se fôra um crepúsculo e uma convalescência”. 

E ainda depois esta notação tão ao sabor do grande ledor de Plutarco, que ele foi “O mais belo monumento que possa revelar ao mundo a passagem de um homem notável é a sua viúva”. 

E assim foi Dias de Barros, uma fé constante e dilacerante na força do espírito, uma fé que lhe não dava o sossego, a “pasmaceira dos ídolos de pau”, mas a vivacidade agônica dos  grandes idealistas de verdade, eternamente descontentes de si mesmos, o que já é meio caminho andado, testemunho de um agudo senso de perfectibilidade. 

Morreu nos braços da Igreja Eterna. Ter-se-á lembrado, talvez, na hora extrema que uma consciência ao menos não teria o menor espanto, a menor surpresa ante o seu gesto de adoração. 

A consciência de um amigo que tem o coração cheio de gratidão pelos mil gestos de bondade com que o amparou em horas amargas. A consciência de um amigo que jamais o esquecerá. 

Gazeta de Notícias, 8 de Fevereiro de 1928.