Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

A Septuagésima

D. Crisóstomo d’Aguiar

Por uma súbita transição, à cor branca, que saudou o nascimento do Divino Infante, sucede, como na Quaresma, o roxo, a indicar a renúncia e penitência. O Gloria na Missa, cessará de se ouvir, visto como a jubilosa alegria que esses hinos anunciam não convém a uma época litúrgica, que deve ser consagrada à ascese, à expiação do pecado, sendo, como é, prolongamento, ou antes prelúdio, da Santa Quarentena que se aproxima. O Aleluia, grito de triunfo, que canta a Jesus ressuscitado durante o todo ano, mesmo na quadra austera do Advento, cessa de se ouvir. Em certas liturgias da Idade Média celebrava-se com especial solenidade este desaparecimento, com ritos muito particulares. Ó Deus, lemos nós numa tocante oração, ó Deus que nos concedeis a solene celebração do desaparecimento do cântico de Aleluia, concedei-nos o podermos unir, para sempre, as nossas vozes às dos Santos, que incessantemente o cantam na eterna felicidade do Céu. Doravante, até ao Sábado Santo, não mais o ouviremos, e na Missa será substituído pelo Tractus, melodia simples, de caráter menos festivo. Se o jejum ainda não é de rigor, por enquanto, é certo que o tom predominante da Liturgia deste tempo é austero e indica sacrifício e imolação.

É o que se vê nos textos, de que se deparam vestígios já no século sexto e que encontramos em pleno vigor na época de Carlos Magno. Penetremo-nos deles, e analisemo-los. A Igreja, depois de nos mostrar como Jesus foi recebido com entusiasmo em razão da glória divina que lhe resplandecia na face, introduz-nos de súbito nas profundezas tenebrosas da queda de Adão. É no Antigo Testamento que nos ensina a verdade, não como no Natal, para contemplarmos a nossa grandeza, mas sim a nossa miséria. Com que vigor não nos é inculcado o dogma do pecado original com suas consequências, que o Salvador há de vir a reparar! Como da queda dos protoparentes nós concluímos bem a profunda decadência moral da humanidade, vendo Deus castigar-lhe a malícia com um dilúvio (Sexagésima) de que só escapara Noé, chefe da raça, a única que se conservara fiel ao seu Deus!

Em Abraão imolando seu filho à vontade divina assim como em Melquisedeque que oferece pão e vinho em sacrifício ao Altíssimo (Quinquagésima), quem não vê pressagiado o sacrifício que Deus exigiu do seu próprio Filho para a redenção das faltas de todo o gênero humano? Eis o que nos ensinam as leituras do livro do Gênesis, que o Santo Ofício nos põe diante dos olhos. Um fato original a salientar na Sexagésima é que este domingo é, para assim dizer, consagrado ao Apóstolo S. Paulo: Fazia-se outrora a estação na Igreja de S. Paulo Extra Muros, e lia-se, como hoje na Epístola, a narração dos trabalhos do Apóstolo tirada da carta dos cristãos de Corinto (2Cor c. 11-12). O Evangelho que é o do Semeador evangélico é um primeiro chamamento aos pecadores, incitando-os à conversão, sendo assim fácil pô-lo em relação com as leituras do Ofício que nos mostram Noé pregando aos homens do seu tempo, que o não quiseram ouvir, e foram, conseguintemente, punidos.

Na Quinquagésima, relevemo-lo ainda, é a vocação do Pai dos crentes que a Liturgia nos apresenta, como que animando-nos a venerar nele a fé de todos os patriarcas até Moisés.

Não nos passem despercebidas nesta semana a Quarta-feira, em que se faz a bênção das Cinzas, e as chamadas Quarenta Horas, que datam do século XVI. Chamam-se assim por lembrarem os quarenta dias do jejum de Jesus no deserto, ou as quarenta horas que decorreram desde a sua condenação à morte até a Ressurreição; o fato é que foram instituídas com o fim de reunir diante do SS. Sacramento, exposto dia e noite, os fiéis em grande número em reparação dos escândalos que em divertimentos e mundanidades se cometem nos dias de Carnaval.

É, pois, este período do Ano Litúrgico de caráter acentuadamente austero, e tende a preparar os fiéis para as santas renuncias do tempo quaresmal. Não vimos já como a supressão do Aleluia ― o cântico que o povo de Israel não podia cantar em terra estrangeira, ― nos indica que também o povo fiel o não deve entoar, num tempo em que a consideração das misérias da humanidade lhe traz a alma na aflição? Daqui até aos gozos do triunfante dia da Páscoa, brados de angustiosa compaixão se irão alternando com os graves ensinamentos que os Livros Santos nos darão sobre o sofrimento, sobre as lutas da carne e do espírito, olhos postos no Modelo Divino! A vida oculta do Salvador chegou ao seu termo e vem a hora da sua revelação pública. Mas será uma porfiada luta de três anos, será uma conquista que Ele tem de fazer! O Precursor, ao anunciá-lo, chamara-lhe Cordeiro de Deus, que havia de ser imolado como vítima antes de chegar ao triunfo final! Seria como o grão de trigo que, para não ficar estéril, tinha que ser enterrado (S. João 12, 24).

Ora, a vida cristã é mister que se amolde à vida de Jesus: teremos que nos sacrificar com Ele se queremos vencer! É este o conceito fundamental de toda a verdadeira vida cristã, e é por no-lo inculcar fortemente, mas com suavidade, que se esforça a Igreja neste três Domingos que precedem a Quaresma, ― ensinamentos que, depois, se prolongarão até ao dia bendito da Ressurreição! Cessem, pois, desde já os cânticos de suave alegria, e à semelhança das dos Judeus, cativos em terras de Babilônia, fiquem nossas harpas suspensas dos salgueiros da margem dos rios, onde nos sentamos chorando, ao lembrarmo-nos da santa Sião (Sl 237)!

Já desde o Introito do domingo da Septuagésima nos é apontado o alvo a atingir, e a alma, em face da luta a travar, eleva até Deus um grito lancinante de angústia, que no dia da Sexagésima, tomará uma expressão ainda mais veemente para traduzir uma pungente e trágica tristeza. Mas na Quinquagésima vê-la-emos já tranquilizada, porque encontrou em Deus um rochedo inexpugnável, uma fortaleza, onde se salvará. O Apóstolo na Epístola incita a alma ao combate, fá-la levantar-se do sono, apontando-lhe o exemplo dos Judeus para os quais foi inútil a Encarnarão, porque persistiram na sua tibieza e indiferença. Apresenta-se-lhe, então, na Sexagésima, como modelo, e diante dos nossos olhos abre-se o admirável retrato do zelo apostólico de Paulo, imitador perfeito da vida pública do Salvador.

Mas a doutrina e ensinamentos do Mestre Divino devem ajuntar-se aos exemplos e doutrina do Apóstolo dos Gentios. Assim no Evangelho da Septuagésima, que reproduz uma parte da vida pública de Jesus, é o Senhor da vinha que vem chamar operários e estende o seu chamamento a todas as idades sem distinção, quaisquer que sejam as faltas que o obreiro cometesse; no da Septuagésima, à margem do lago de Genesaré, em Cafarnaum, é o divino Semeador lançando a semente boa no campo do Pai de família, pregando a boa nova aos corações bem preparados, que a recebem com fruto abundante. Aproxima-se, porém, a hora da Paixão, do combater definitivo, em que o Salvador será imolado! Na Quinquagésima, ouvimo-lo dizendo aos Apóstolos que se vai a cumprir o que d’Ele profetizaram os Videntes de Israel; faz-lhes ver num futuro bem próximo a sua paixão e morte, e, atravessando o Jordão, opera em Jerusalém a cura do cego de Jericó ― último dos seus milagres que mostra os benéficos efeitos que em nós deve produzir sempre a palavra potente de Jesus.

Tal é o Tempo da Septuagésima. As leituras do Antigo Testamento no Ofício divino, os ensinamentos dos textos litúrgicos, na santa Missa, tem em vista fazer-nos penetrar da imensa miséria em que andamos desde a queda fatal de Adão, e depois estimular-nos a reconquistar, pelos merecimentos do Salvador, e graças a uma luta constante na vida, a Bem-aventurança, até chegarmos a partilhar, depois da Quaresma, da gloriosa Ressurreição.