Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

Sermão 221, sobre a Páscoa

O DIA E A NOITE

Santo Agostinho

1. Com sua ressurreição, Nosso Senhor Jesus Cristo tornou glorioso o dia que sua morte havia tornado lutuoso. Portanto, trazendo ambos os momentos solenemente para a memória, fiquemos acordados lembrando sua morte e nos regozijando em receber sua ressurreição. Esta é a nossa festa anual e nossa Páscoa; não mais na figura, como foi para o povo antigo, através da degola de um cordeiro [1] , mas realizada, como para o novo povo, através do sacrifício do Salvador, porque Cristo, nossa Páscoa, foi imolado [2], e o antigo já passou e eis que tudo foi feito novo [3]. Se choramos, é somente porque o peso de nossos pecados nos oprime e se nos alegramos é porque Ele nos justificou sua graça, porque Ele foi entregue por nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação [4]. Chorando o primeiro e regozijando-nos pelo segundo, estamos cheios de alegria. Não deixemos passar despercebida com  esquecimento ingrato, mas celebremos com gratidão a lembrança da nossa causa e do nosso benefício: tanto o triste acontecimento como a alegre antecipação. Permaneçamos acordados, então, amados, já que o sepultamento de Cristo durou até esta noite, para que nesta mesma noite tivesse lugar a ressurreição da carne que então, quando estava no madeiro, foi objeto de zombarias e agora é adorada no céu e na terra.

Entende-se, de fato, que esta noite pertence ao dia seguinte que consideramos como o dia do Senhor. Certamente Ele devia ressuscitar durante as horas da noite, porque com sua ressurreição ele também iluminou nossa escuridão e não foi em vão que ela foi cantada com tamanha antecipação: Tu iluminarás minha lâmpada, Senhor; Meu Deus, Tu iluminarás minhas trevas [5].

Nossa devoção também faz honra a um tão grande mistério, de modo que, como nossa fé, corroborada por sua ressurreição, já está desperta, então esta noite, iluminada por nossa vigília, brilhe tão intensamente que, junto com a Igreja, estenda-se por todo o orbe da terra, hoje possamos pensar, como é devido, em não sermos encontrados na noite. Para tantos e tantos povos que, sob o nome de Cristo, reuniram em toda parte esta célebre solenidade o sol se pôs, mas sem deixar de ser dia, pois a luz da terra tomou a forma da luz do céu.

2. Entretanto, se alguém procura a que se deve a importância da  nossa vigília, pode encontrar as causas adequadas e responder com confiança, poIs aquele que nos outorgou a glória de seu nome foi quem iluminou esta noite, e aquele a quem dizemos: Tu iluminarás minhas trevas; concede luz a nossos corações, para que, do mesmo modo, com deleite para os olhos, vemos o esplendor dessas lâmpadas, assim também vejamos, iluminada a mente, o sentido desta noite brilhante.

Por que, então, os cristãos são mantidos despertos nesta festa anual? Esta é nossa vigília por excelência, e nossos pensamentos não costumam voar para nenhuma outra solenidade que não seja quando, movidos pelo desejo, perguntamos ou dizemos: ‒Quando é a vigília? ‒Em tantos dias, responde-se, como se, em comparação, os outros não devessem ser mantidos em vigília. Certamente, o apóstolo exortou a Igreja a ser assídua não só nos jejuns, mas também nas vigílias. Falando de si mesmo, ele diz: muitas vezes em jejum, muitas vezes em vigílias [6] . Mas a vigília desta noite se destaca tanto que ela pode reivindicar como próprio o nome que é comum a todas as demais. Assim, direi algo ‒ que o Senhor me conceda ‒ primeiro sobre a vigília em geral e depois sobre a vigília específica de hoje.

3. Naquela vida pela consecução de cujo descanso todos nós nos fatigamos, vida que nos promete a verdade para depois da morte deste corpo ou também para o fim deste mundo, na ressurreição, nunca hemos de dormir, como tampouco nunca morreremos. Que mais é o sono senão uma morte cotidiana que nem retira completamente o homem daqui nem o retém por um muito tempo? E que mais é a morte, senão um sono longo e muito profundo, do qual o homem é despertado por Deus? Portanto, onde não chega morte nenhuma, tampouco chega o sono, sua imagem. Consequentemente, somente os mortais experimentam o sono. O descanso dos anjos não é desse tipo; uma vez que vivem perpetuamente, eles nunca reparam sua saúde com o sono. Como ali há a própria vida, há uma vigília sem fim. Lá a vida não é nada além de velar, e velar não é nada além de viver. Nós, por outro lado, enquanto estamos neste corpo que se corrompe e subjuga a alma [7], já que não podemos viver se não repararmos as forças com o sono, interrompemos a vida com a imagem da morte para poder viver, pelo menos, por intervalos. Portanto, quem quer que assídua e castamente e sem prejudicar ninguém, atende às vigílias, sem dúvida imita a vida dos anjos ‒pois, como a fraqueza desta carne se torna para eles um peso terreno, os desejos celestiais se encontram sufocados ‒ combatendo com uma vigília mais longa contra esse peso portador da morte, para adquirir uma recompensa na vida eterna. Está em desacordo consigo mesmo quem deseja viver para sempre e não quer prolongar suas vigílias; deseja que a morte desapareça completamente e não quer que sua imagem diminua. Esta é a causa, este é o motivo pelo qual o cristão tem que exercitar sua mente, mantendo-a a velar, com maior freqüência.

4. Agora, irmãos, enquanto recordamos algumas outras coisas, ponde vossa atenção na vigília especial desta noite. Eu disse por que devemos subtrair o tempo do sono e adicioná-lo às vigílias com maior frequência; Agora vou dizer por que ficamos acordados hoje à noite com tanta solenidade.

Nenhum cristão duvida que Cristo, o Senhor, ressuscitou dentre os mortos ao terceiro dia. O santo evangelho atesta que o acontecimento teve lugar esta noite. É claro que o dia inteiro começa a ser contado a partir da noite anterior, mesmo que não se ajuste à ordem dos dias mencionados no Gênesis, embora também tenha havido trevas antes do dia, porque as trevas pairavam sobre o abismo quando Deus disse: “Faça-se luz, e a luz foi feita” [8]. Mas uma vez que a escuridão ainda não era a noite, também não havia dias. De fato, Deus fez a divisão entre luz e trevas [9], e primeiro chamou “dia”  à luz, e depois “noite” às trevas, e foi mencionado como um único dia o espaço de tempo desde que a luz foi feita até a manhã seguinte. É evidente que aqueles dias começaram com a luz e, passada a noite, duraram cada um até a manhã seguinte. Mas, depois que o homem criado pela luz da justiça caiu na escuridão do pecado, da qual a graça de Cristo o libertou, o fato é que contamos os dias a partir das noites, porque o nosso esforço não é direcionado a se mover da luz para as trevas, mas das trevas para a luz, que esperamos alcançar com a ajuda do Senhor. Assim diz o Apóstolo: A noite passou, o dia chegou; Vamos então nos despir das obras das trevas e colocar as armas da luz [10] . Portanto, o dia da paixão do Senhor, o dia em que foi crucificado, seguiu sua própria noite já passada, e é por isso que se encerrou e se concluiu na preparação da Páscoa, que os judeus também chamam de “ceia pura”, e a observância do sábado começava no início desta noite. Consequentemente, o sábado, que começou com sua própria noite, concluiu-se na tarde da noite seguinte, que já é o começo do dia do Senhor, porque o Senhor o tornou sagrado com a glória de sua ressurreição. Assim, pois, nesta solenidade celebramos agora a memória da noite que deu começo ao dia do Senhor e passamos a velar a noite em que o Senhor ressuscitou. A vida da qual Ele falou pouco tempo antes, na qual não haverá nem morte nem sono, ele iniciou para nós em sua carne, que de tal forma ressuscitou dentre os mortos que Ele já não morre mais, nem a morte tem domínio sobre Ele [11].

Aqueles que o amavam foram ao seu sepulcro para procurar seu corpo pela manhã e não o encontraram, mas receberam um aviso da parte dos anjos que Ele já havia ressuscitado; fica claro, portanto, que Ele havia ressuscitado naquela mesma noite, cujo termo era aquele amanhecer. Consequentemente, o ressuscitado, a quem cantamos nesta vigília um pouco mais longa, nos permitirá reinar com ele na vida sem fim. E se, por acaso, nestas horas que estávamos acordados, seu corpo ainda estava no túmulo e Ele ainda não havia ressuscitado, não é por isso que nos comportamos de maneira incongruente, porque quem morreu para que pudéssemos ter vida, adormeceu para que nós ficássemos acordados. Amém.


Notas:

[1] Cf. Êxodo XII, 1-28;43,50;

[2] I Coríntios V, 7;

[3] II Coríntios V, 17;

[4] Romanos IV, 25;

[5] Salmos XVII, 29;

[6] II Coríntios XI, 27;

[7] Sabedoria IX, 15;

[8] Gênesis I, 2-3;

[9] Gênesis I, 4;

[10] Romanos XIII, 12;

[11] Cf. Romanos VI, 9.

Traduzido por Leonardo Brum a partir da versão espanhola de Pío de Luís, OSA, disponível em <https://www.augustinus.it/spagnolo/discorsi/discorso_281_testo.htm>.