Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

À margem dos estudos de Tristão de Ataíde

Jackson de Figueiredo

Acabo de reler, em livro, a 1º série dos artigos com que Tristão de Ataíde* tem elevado verdadeiramente o nível do nosso meio literário, não só porque, na função de crítico, foi ele quem –  na imprensa – reergueu o que caíra em mãos como as de Osório Duque Estrada, de todo em todo incapazes, mas também porque, indo além do que pede o gênero, a ele se deve o incitamento aos contatos mais dolorosos com a monstruosa inquietação contemporânea. 

Tem feito bem? Tem feito mal? Só Deus o sabe, e a cada um de nós os da sua geração, nada mais cabe que julgá-lo pelo critério único do temperamento, com este reconhecimento, porém: o  de que um juízo formal a seu respeito só poderia fazê-lo quem fundisse, de uma vez, intuitivamente, todas as feições do nosso desenvolvimento histórico, inclusive as do futuro. E é esta a impossibilidade com que se depara toda consciência honesta, se tem a ajuizar, presentemente, no domínio cultural, de uma criatura verdadeiramente viva, de uma outra consciência positivamente acima do vulgar. Mais ainda, e o que é mais grave: nem mesmo a ajuda de uma doutrina, tão bem definida como a católica, adianta, de modo apreciável, em casos tais. Nós, católicos, dada a verificação que só não fazem os cegos,  da profunda inquietação, da assombrosa desordem das consciências, de um a outro extremo do que se pode chamar a “elite” intelectual do mundo, nem sempre  podemos dizer a rigor o que vale, em relação à nossa finalidade moral, o esforço dessa ou daquela alma. E se, as vezes, um católico de convicção se nos apresenta como o mais repugnante ou o mais inconsciente dos fariseus da nova lei, não raro, um declarado inimigo da Igreja, nós o sentimos, trabalha, talvez a contra gosto, em favor do que ela é, em essência, do que ele quer, em última análise. Repito: o critério do temperamento, eis o que nos resta, para enfrentar casos como este. 

Mas se é assim, e a confissão está feita, que poderei dizer da atividade crítica, da atividade intelectual de Tristão de Ataíde, em nosso meio literário? 

Em resumo: a princípio Tristão de Ataíde só fez bem, mesmo quando, a meu ver, estava em harmonia om o erro, ou melhor, em desarmonia com a verdade. Era que ele representava sempre a face subjetiva dessa mesma verdade desconhecida, uma convicção sincera, e ficou sempre provadamente, acima de todo e qualquer interesse subalterno. Foi ele, digo-o de novo, sem medo de errar, quem, na imprensa do Brasil dos nossos dias, refez a nobreza da atividade crítica, foi ele quem, portanto, concorreu mais de quem quer que fosse para uma fase nova de seriedade e de respeito das letras nacionais. Porque a verdade é que os espíritos sérios como o de Nestor Victor, por exemplo, forçados pela mediocridade ambiente e pela hostilidade de uma imprensa a que a venalidade tornara quase que exclusivamente politiqueira e anti-intelectual, esses espíritos se abstinham da lua na sua amarga feição quotidiana. 

De tempos para cá, porém, tem que ser muito mais complexo qualquer juízo a formular sobre Tristão de Ataíde, mesmo quando, confessadamente, como o faço agora, não se procure obedecer senão às leis do próprio temperamento doutrinal, e ele, Tristão de Ataíde, entenderá perfeitamente a distinção que implica no caso o emprego da palavra temperamento. Salvo, não resta dúvida, a afirmação da sua sinceridade, o que resta a analisar é se há o direito de ser totalmente sincero, quando nos dirigimos a uma mídia social (e é este sempre o caso de quem escreve na imprensa), e sincero quanto a singularismos, da espécie das que, com tanta força, alastram por toda a extensão do ambiente cultural europeu. 

Confesso ainda uma vez: o pecado da sinceridade radical, infenso ao sentimento das circunstâncias, para além de toda e qualquer relação com a hierarquia  dos nossos deveres sociais, sobreposto à ordem mesma dos nossos compromissos internos, é, de todos os verificados na órbita da minha atividade espiritual, o que mais me tenta e subjuga a imaginação e a sensibilidade. 

Entretanto, eis o que é amargo confessar: tenho me surpreendido em atitude de verdadeiro pânico ante certas concessões feitas por Tristão de  Ataíde ao confusionismo, ao artificialismo, ao “culturismo” meramente literário de certas moléstias da alma contemporânea, aqui entre nós também repontando, não raro, em aleijões de fúlgida melancolia ou de espantadiça e dolorosa beleza, dignas de  hospital ou  de hospício. 

Que fazer em tais encruzilhadas da vida? Que tem a ver o valor pessoal de um homem, como homem, como ser que representa uma parcela viva da angústia universal, com o que esse homem representa no campo da atividade intelectual da sua época? É possível separar, julgar separadamente esse homem e sua obra?  

No caso de Tristão de Ataíde, nós, católicos, penso eu, não devemos vacilar. Temos que aceitá-los, a ele e  sua obra, como uma só afirmação de força espiritual, de beleza moral, o  maior atestado de cultura literária no Brasil contemporâneo e uma das poucas, das raríssimas “provas”, de que o caráter não desertou  ainda completamente da nossa vida social, isto é, do mundo de relações estabelecidas entre esta e a atividade propriamente individual das consciências. 

Tive a dita, ainda ontem, de ver este mesmo julgamento emitido por um homem como o Pe. Leonel Franca em carta, que lhe dirigiu e passou por minhas mãos. O Pe. Leonel Franca, certamente, o maior vulto no domínio do pensamento brasileiro, neste momento, não terá, como eu, atendido unicamente à voz do temperamento. Isto me conforta enormemente. Mas, confesso ainda, não me liberta de certas dúvidas cruéis sobre a atitude que deve ser a dos espíritos verdadeiros e castos – da alta castidade da inteligência – em relação a essa fulgurante, estonteante prostituição da alma humana, que é quase toda a literatura “viva” dos tempos modernos, para além da ordem católica, a única que, talvez, por milagre, tem, apesar de tudo, resistido à invasão. 

Não me cabe, pois, fazer a crítica de cada página do crítico eminente. Há no seu livro, mais de uma, que subscrevia, absolutamente convicto de que o fazia como filho e soldado da Igreja. A respeito da, em que estuda a obra de Tobias Barreto, pôde dizer-lhe o mesmo admirável senso crítico do Pe. Leonel Franca: “O estudo sobre Tobias Barreto é admirável de equilíbrio sadio, de avaliação exata de valores, de objetividade desapaixonada. Subscrevo com ambas as mãos a sua conclusão: “nem um precursor, nem um filósofo, nem um espírito nacional”. 

Que poderia eu dizer que honrasse tanto a Tristão de Ataíde? E que direito tenho eu de parar em frente, de medir a altura, a tantas outras páginas, que o alto espírito eclesiástico preferiu olhar com simpatia e passar adiante? Não. À margem dos Estudos não quero deixar senão o testemunho desta alvoroçada angústia em que há de ficar sempre uma consciência católica, toda vez que lhe é dado verificar a existência de uma alma, amante da verdade, apaixonada pela  verdade e, no entanto, ainda a correr por sobre os altos muros da cidade eterna, não se sabendo bem se vai cair para dentro se para fora, se ao seio da misteriosa vida do bem, se nos abismos da negação  irremediável…

Gazeta de Notícias, 19 de Outubro de 1927 


* Pseudônimo utilizado por Alceu Amoroso Lima.