Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

É incrível!

Jackson de Figueiredo

Sei que, em geral, a cultura dos católicos no Brasil, quase não alcança nunca o domínio da política, onde a Igreja, no entanto, como em tudo o mais, tem ideias definidas e claras. 

Talvez por simples covardia moral – temor de se saber cúmplice de um estado de coisas essencialmente revolucionário – talvez, por outra coisa mais delicada, o fato é que o católico brasileiro é, repito, na maioria absoluta dos casos, um indivíduo esquecido da sua Igreja, dos seus ensinamentos, dos seus direitos assim como dos seus deveres, e das suas limitações doutrinárias, todas as vezes que é forçado a manifestar-se no campo das lutas políticas. Não é nunca como católico, ou quase nunca, que ele encara a sua cidadania e atua como cidadão. 

Assim, por exemplo, em relação à revolução, quero dizer, ao proclamado direito de rebelião a mão armada, o que se tem visto sempre, nas horas mais críticas, é o terror de definir-se catolicamente sobre o assunto, ou sobre os casos concretos, e os católicos, individualmente, atuando pró ou contra a revolta, na mais perfeita segurança da sua fé. 

Não é preciso dizer mais do que o seguinte: há cinco anos que é verdadeiramente chocante a efervescência revolucionária em terras brasileiras. Pois bem: excetuem-se um ou outro ato de consideração ao governo constituído, emanado das autoridades eclesiásticas daqui e de Minas; a atitude desassombrada de D. Epaminondas, de Taubaté; uma circular de D. Duarte Leopoldo e a forte e digna pastoral de D. João Becker, a realidade é que a própria Igreja, entre nós, parece alheia à luta, esquiva a ter opinião, não menos tímida em face do governo – se o julga tirano – do que ante a revolução – se a julga injusta. 

Do ponto de vista do catolicismo no Brasil, nada mais perdoável, pois, do que o ato revolucionário, dado que a orientação pública e notória, positiva e clara, tem, na verdade, faltado a todos nós quantos nos ajoelhamos ante os altares de Jesus Cristo. 

Eis porque, confesso, sempre considerei o capitão Juarez Távora uma das figuras mais simpáticas da revolução. Falaram-me sempre dele como de um católico, e eu que, ainda hoje, não sei se endosso uma inverdade, mais de uma vez fiquei a imaginar que doloroso não deveria ser o estado de consciência desse homem, a debater-se entre a fé e a paixão, já de armas em punho e sem plena segurança do direito de empregá-las, dada a lição da Igreja: a revolução é um mal, de que só se pode lançar mão contra um mal maior, evidentemente maior, como seja uma tirania desrespeitadora de todos os direitos naturais e provadamente invencível pelos meios meramente políticos, pela resistência passiva e outros de igual beleza moral. 

Ora, quando, no Brasil, um homem pôde falar a sério, e de boa fé, em tirania absoluta? 

Seja como for, porém, ainda hoje não me arrependo de ter olhado com simpatia a vertigem política do capitão Távora. Esta simpatia, aliás, sempre estendi a todos os revolucionários, que arriscaram a vida e todo o sossego, vítimas que foram dos próprios ingênuos ideais, exacerbados, exaltados, desorientados, enfim, pela macabra truanice demagógica dos que, quase sem risco, fizeram da pregação revolucionária meio de vida. 

Definitivamente, sou pelos homens de antes quebrar que torcer, estejam eles contra ou a favor das causas que defendo. Por exemplo: a respeito da almejada paz, de que tanto se tem falado ultimamente, entre o discurso de despedida do Sr. Plínio Casado, tão finamente político e tão grossamente insincero, e o que escreveu o capitão Nery da Fonseca, se me fosse dado escolher a quem ouvir, eu, de certo, preferiria a rude altivez do militar revoltoso. 

Também acho que, se o governo quer a paz, se o governo confessa que não a pode impor, então ela só “deve ser trada com quem está de armas na mão”, por isso mesmo que, em definitivo, “não há meio termo nesta questão, que compre terminar para bem de todos os brasileiros.” 

Quem está de armas na mão é, pelo menos, quando mais não seja, um inimigo de sofismas e perigosas nuanças. Certamente sabe o que quer e certamente o dirá com clareza e dignidade. 

Entretanto – devo confessá-lo também – acaba de sobremodo decepcionar-me um artigo que o capitão Távora publicou no “O Jornal” de 1° do corrente, sendo ele, como é, um dos mais autorizados representantes dos ideais revolucionários. 

O artigo tem uma feição simpática: a de uma certa serenidade, a da perfeita decência das suas expressões, coisa rara nos documentos revolucionários publicados ultimamente, quase todos caracteristicamente e em absoluta contradição com o apregoado desejo de paz. 

O que decepciona no referido artigo do capitão Távora não é também a falta de franqueza ou de coragem na atitude assumida. Não. O Sr. Juarez Távora diz, com sinceridade digna de todo o louvor, que duvida da anistia como remédio capa de “cicatrizar todas as feridas abertas, no choque direto da própria guerra.” 

A anistia, a seu ver, e quando muito, proporcionaria “o desafogo de uma trégua”. O oficial revoltoso quer o entendimento livre, de igual para igual, entre as duas forças que se digladiam, o governo e os revoltosos, cada uma das quais representando, no seu entender, “duas ordens de ideias”, no ensanguentado, no enlutado cenário do Brasil contemporâneo. 

Se um tal entendimento, nestas determinadas condições, não é possível, endente o capitão Távora que, qualquer que venha a ser a solução, mesmo em caso de vitória de uma das partes, “subsistirão, latentes, no ânimo de vencedores e vencidos, os germens corrosivos da desconfiança e ressentimentos recíprocos, que gerarão, no futuro, a fatalidade de novos pronunciamentos.” 

Muito ao contrário do que pensa o chefe revolucionário, penso eu que a vitória definitiva da autoridade sobre a rebeldia será o bastante para assegurar ao Brasil longos anos de paz, principalmente se essa vitória não for o resultado de um simples jogo material de forças, mas a consequência de um sério esforço moral, no sentido de reforçar deveras o princípio de autoridade, coisa que nem sempre soube ou pôde fazer o Sr. Arthur Bernardes, força é dizê-lo, pois nem sempre os meios e os homens de que usou, na luta contra os perturbadores da ordem pública, foram de molde a recomendar um governo que deveria apresentar-se, em todos os momentos, como verdadeiro sistematizador dos elementos conservadores que, dispersos e, as vezes, até opostos, ainda assim representam o que há de melhor na vida nacional. 

Mas não é este o momento de discutir quem tem razão neste sentido. 

O que me interessa, por enquanto, são as opiniões do Sr. Capitão Távora relativamente aos motivos da revolução, opiniões que não estão somente no seu artigo de setembro de 1926 (artigo só agora publicado) mas também na sua carta ao deputado Batista Luzardo. 

Em resumo diz o oficial revoltoso que “a luta não se travou em torno de pessoas (o que – digo eu – nem sempre mostram compreender os nossos dirigentes políticos) mas contra o predomínio de determinadas normas governamentais, supostas (a palavra é do capitão Távora) atentatórias aos legítimos interesses do país.” 

O Sr. Juarez Távora é mesmo, neste ponto, de uma clareza meridiana: 

“Não possuo, – diz ele – como também não o possuirão os revolucionários, em geral, motivos para descrer das intenções generosas do atual presidente da República. Não é, porém, a sua pessoa, como não o era a do seu antecessor, o fator decisivo da contenda. Esta – já o disse – surgiu de um antagonismo de princípios. Consequentemente, a paz que há de encerrá-la, deve nascer de um acordo entre as ideias que se chocaram”. 

Pois bem: o que me espanta e ao mesmo tempo me entristece é não ter encontrado, por mais que procurasse, nas duas longas exposições, do Sr. Juarez Távora, nenhuma caracterização, nenhuma definição desses princípios, dessas ideias que ele diz representar, e que se contrapõem aos princípios e ideias dominantes no situacionismo brasileiro, deste momento. Há mesmo que reconhecer uma louvável pobreza de imaginação da parte do oficial rebelde, ou é que, graças a Deus, lhe repugnou o lançar mão de mentiras, de calunias, de meras invencionices ou de pérfidas “pessoalidades” para, como tanta gente do lado da revolução, apresentá-las em lugar de princípios e ideias, turvando somente a atmosfera e embaindo a massa popular. 

E muito depressa, ao que me parece, esqueceram os revolucionários os motivos de mais vulto, que os levaram a convulsionar o país, com sofrimento, sobretudo, para as pobres e desprotegidas populações no interior. Porque o Sr. Távora, deixando de parte tudo o mais, não se lembra de reivindicações outras, inadiáveis, que as do voto secreto e da reforma da lei de imprensa!! 

É positivamente assombroso! Assombroso que um homem se tenha desgarrado da disciplina militar, provocado, em um país como o nosso, um levante militar de proporções tão vastas, como o de São Paulo, e depois levado o ferro e o fogo às regiões menos interessadas pelos surtos demagógicos dos nossos grandes centros urbanos, e venha depois confessar que tudo isto fez, tudo isto se está fazendo para que, num encontro de ideias(!), venha a estabelecer-se no Brasil o voto secreto e a imprensa obtenha mais amplas liberdades!! 

É, repito, positivamente assombroso! 

Que a adoção do voto secreto ou de qualquer espécie de voto, possa ainda provocar, em qualquer parte do mundo, o derramamento de uma gota de sangue, creio que não merece uma só palavra de discussão a sério, pois não há quem creia na seriedade de tal discussão. 

Dadas as lições do mundo inteiro, a esta hora, é simplesmente risível o prurido reformador de mediocríssimos profetas como o Sr. Pinto Serva, mas é legítimo o direito de qualquer cidadão a ser cego ou surdo, a ser mesmo doido ou idiota, enquanto a cegueira ou a loucura não se quer impor violentamente, como norma, a todos quantos a observam. 

O caso, porém, dos que procederam como o capitão Távora – se é verdade o que ele diz – o que, piamente, creio – é de loucura furiosa, e da pior, pois que, se mansamente se anuncia, tem a prática de todas as tropelias e de todos os atentados, não já somente contra os representantes das adoráveis instituições republicanas, que nos governam, mas também contra inocentes populações que pouco ou mesmo nada sabem do que querem republicanos situacionistas ou revolucionários, republicanos ou não. 

Mas a respeito da lei da imprensa, ainda é mais difícil discutir com o capitão Távora, pois se ele é mesmo um homem de boa fé, e foi mesmo o escrevinhador daquelas queixas, só se tem a dizer que, católico ou não, lhe está mais do que assegurado o reino do céu, pois não é possível, é até absolutamente impossível, dar-se prova de maior simplicidade de espírito. 

Então, o Sr. Capitão Távora julgou necessário até revolucionar o Brasil para garantir uma maior liberdade à sua imprensa? 

Que se há de dizer diante de uma coisa assim? 

O Sr. Távora lerá nos jornais de seu país alguma coisa além das suas próprias últimas produções? 

Que é que falta a essa imprensa, que, deste modo, assim impressiona o distinto oficial? 

Entre a imprensa vendida aos governos e a não vendida, entre a imprensa que tem os seus interesses ligados ao grupo dominante e a que tem outros, e não menores, ligados a grupos, às vezes, dos mais sinistros e dos mais perigosos, desejava saber se a diferença que encontra o Sr. Távora é a de ser a primeira mais livre, mais desembaraçada, mais atrevida que a sua rival. 

Desejaria o Sr. Távora que ela pudesse usar de linguagem ainda mais violenta, mais grosseira, mais revolucionária e anárquica, do que tem usado, por exemplo, nestes últimos cinco dias, apesar da famosa lei de imprensa? 

Pois creio que em dicionário algum da nossa língua encontraria, quem quisesse ir além do que se está fazendo, a ajuda mais mesquinha. Está esgotado o calão, e toda a turpitude que é possível exprimir em língua portuguesa, apesar das riquezas novas que, neste sentido, lhe tenham emprestado a vasa internacional e a bruteza africana. 

O Sr. Távora confessa que um dos motivos que o fizeram revoltoso, foi o desejo de tornar ainda mais livre a imprensa de seu país… 

Não, não é possível discutir o valor moral de uma tal confissão. 

Uma coisa é certa: o Brasil político, e talvez mesmo a pátria brasileira não resistirá mais de pé, por muito tempo, dentro das linhas gerais do seu atual direito público. 

Não está lutando contra esse ou a aquele grupo de consciências mal orientadas. A sua luta é um despedaçamento interior, é um delírio, uma perfeita ânsia de suicídio. Homens apontados sérios e tidos por inteligentes, apresentam, de repente, de um lado, as características mais probantes da paralisia geral, –  otimismo, descaso quase absoluto do que se está dramaticamente desenrolando – do outro, o que acabo de mostrar: uma perfeita embriaguez de palavras, a mais completa, a mais positiva fuga mental à nossa realidade social e política.           

Pobre, realmente, do Brasil, se o milagre de um homem não surgir, capaz de forçá-lo a tratar-se convenientemente, dentro de um regime de força e de decisão, a única higiene capaz de salvar um povo verdadeiramente “ferido nas fontes da vida”, para empregar ainda uma frase de Silvio Romero, em relação ao nosso. 

Não resta dúvida, Sr. Capitão Távora: nós precisamos de uma revolução, de uma grande revolução, mas é de cima para baixo, é a revolução do governo que quer e tem a obrigação de salvar a sociedade que se lhe confiou. 

Gazeta de Notícias, 5 de janeiro de 1927