Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

O Saci, o Avanhandava e o Imperialismo pacífico…

Jackson de Figueiredo

Quem acompanha com interesse o movimento da crítica contemporânea em derredor da obra de Marcel Proust, verifica, dentro de pouco tempo, que o essencial nesse debate, como em todos os demais sobre a arte, é o da relação moral entre a personalidade do autor e a beleza apreendida, realizada, a beleza propriamente literária.

Entretanto, o fenômeno que mais me preocupa na obra do singularíssimo revelador, é o da sua despersonalização, se assim podemos dizer, da sua quase absoluta despersonalização dentro de uma obra que, à primeira vista, se apresenta como a última palavra do subjetivismo, como a mais perfeita transfusão de um “eu” no complexo ambiente da modernidade, transfusão tão violenta, ou melhor, tão imperiosas, que o que mais nos admira, ao fim da análise a que sujeitamos os seus dois elementos – de um lado, a alma do artista, do outro, a multiplicidade moral da vida contemporânea – o que mais nos admira, repito, é a simplicidade a que se reduz o segundo termo daquela relação: o mundo que se fez uma pura expressão, entre amorosa e dolorida, de um eu sobretudo preocupado de si mesmo. 

Guardadas as proporções, um peso há na literatura nacional, neste momento, que também, do mesmo modo, me aviva a curiosidade psicológica, e é o do Sr. Plínio Salgado, o autor d’“O Estrangeiro”, romance ou crônica da vida paulista, como ele próprio o subintitula. O caso do Sr. Plínio Salgado não é de modo algum o de Proust, no sentido daquele naufrágio do mundo no luminoso crepúsculo de um eu. Mas em uma das suas feições mais acentuadas, coincide, de forma impressionante, com a do grande romancista francês: a da despersonalização real, profunda, de um autor que se apresenta com toda a exterioridade de um subjetivismo exagerado.

Mas, por outro lado, o caso do Sr. Plínio Salgado terá, talvez, esta definição: objetivação quase de perfeita de um subjetivismo equilibrado. O que faria pensar no exagero seria justamente essa profunda capacidade de fixar-se em face das coisas e, por conseguinte, dominá-las.

Seja qual for a nossa escolha, porém, entre as duas hipóteses, o que há de positivo é o de ser o Sr. Plínio Salgado um configurador por excelência, um homem que não sai nunca de si mesmo, não vê nunca com olhos de empréstimo, mas com força bastante de domínio sobre si próprio, a tal ponto que, em todo o movimento, o tumulto do seu romance, jamais consentiu em aparecer em cena. Sente-se que ele está por trás, nos bastidores, a focalizar os personagens, e às vezes nem esconde que os dirige também. Mas até o que deixa aparecer como pensamento próprio, do narrador, do ficcionista – se quiserem – ganha na sua prosa um tom, uma fisionomia de além de si mesmo, da sua pessoa, da sua condicionalidade de espectador interessado.

Este seu caso com o de Andrade Muricy (bem mais delicado, mas não mais impressionante) dão à prosa brasileira contemporânea um valor singular na história: não o de transplantação de escola ou forma europeia, mas o de documentação e testemunho nosso também de uma atitude nova do espírito em face do mundo.

Ora, é evidente que um livro como o do Sr. Plínio Salgado mereceria, do ponto de vista estético, uma análise aprofundada e, a meu ver, mesmo, um elogio dos mais calorosos.

Não é, porém, desse ponto de vista que o poema, ou romance, a ficção lírico-dramática d’“O Estrangeiro” merece, a esta hora, o meu maior interesse.

O meu desejo é mais simples, e é só o de chamar a atenção dos que me leem para uma nova feição do otimismo brasileiro, feição tanto mais empolgante quanto não há linha particular dela que não revele um sofrimento, uma amargura, uma ânsia da nacionalidade.

“Eu creio que o Saci, na sua puerilidade, sabe enfrentar todas as formas do imperialismo pacífico…”

Sim, S. Paulo não é a clássica “mais poderosa das unidades da Federação”. S. Paulo é, sobretudo, o mais sério problema moral da nacionalidade, problema em cuja íntima contextura pode-se dizer que está preso, como num aranhol, todo o futuro do elemento propriamente nacional, isto é, o futuro da brasilidade.

Se este livro, se este romance, se este resultado da atividade configuradora de um espírito, dá testemunho, por sua vez, da força configuradora da coletividade paulista, que bálsamo que é este livro para a nossa inquietação!

O Estrangeiro para quem a terra surgira “pura e divina como a virgem das purificações.”

Salus infirmorum

Consolatrix afflictorum;

para quem, no entanto, fora, apenas, “o caminho do triunfo, que o devolvia a todas as amarguras e rebeldias de outrora; devesa desabrochada em espinhos, como os olhos misteriosos de Maria de Lourdes”; isto é, com a força vital e a tristeza mortal do amor; e que, por fim, nem ao menos neutralizara o veneno que trouxera nas veias, esse Estrangeiro é aquele, irredutível, a quem a terra nova, se não despersonaliza, na desmoralização e na miséria, acaba por fulminar, impelindo-o, de repente, novamente, para si mesmo. Mas há outro Estrangeiro, múltiplo e vulgar, que serve de coro a essa figura dramática e dolorosa. É a este que o Brasil opõe a puerilidade poderosa do Saci… Esta somente?

O próprio livro do Sr. Plínio Salgado aponta outras barreiras, que são, ao mesmo tempo, máquinas de nacionalização, retortas de brasilidade.

“Desgraçado do homem sem paredes.”

É o próprio Estrangeiro – o irredutível – quem o proclama na dor do seu renascimento, à distância, no seio da sua miséria originária.

Daí a lição admirável: “Não o sonho-indivíduo, o sonho parcela, das experiências de Ivan, oriundas de um estado pessoal: mas o sonho-país, filho espontâneo da terra e da raça”…

E tudo o mais que transforma a “boutade” de Mello Moraes Filho sobre o nacionalismo da febre amarela, naquele sério aviso da Apoteose ao Anhanguera:

“Juvêncio deve andar fugido pelo sertão. Ele era o Anhanguera palrador e iluminado. Como o Avanhandava, que estourava ali perto da sua maleita e do seu esquecimento – a vigilante força obscura…”

Para nós, nacionalistas racionais, e não somente, ou quase nada sentimentais, este poema d’“O Estrangeiro” é, mesmo nos seus mais aflitivos e cruéis avisos, um livro de esperança e de fé.

Gazeta de Notícias, 1º de dezembro de 1926