Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

Com o Sr. Coelho Netto

Jackson de Figueiredo

Ao iniciar — quem sabe? — uma polêmica, devo dizer que não tenho prevenção de espécie alguma contra o Sr. Coelho Netto — o literato. Desde que fez, há anos, a declaração de que ia cancelar na sua obra literária alguns milhares de adjetivos, nunca mais li coisa alguma da sua literatura, e só o farei quando tiver a certeza de que já passou pela anunciada reforma ou depuração. Assim, nem mesmo irritação de ordem puramente literária, tenho contra o Sr. Coelho Netto romancista, dramaturgo, “conteur”, etc.  

Mas me anunciaram, há tempos, que o Sr. Coelho Netto se confessara espírita e se fizera, com o seu costumeiro gasto de adjetivos, profeta e propagandista da nova lei.  

Interessando-me, como me interesso, por tudo quanto caracteriza a vida moral do Brasil contemporâneo, é claro, não podia deixar de atentar no caso do Sr. Coelho Netto – homem de grande renome, sol das nossas letras faladas e escritas, rival do Sr. Candido de Figueiredo em matéria de vocabulário — e, desde então, todas as vezes que me apontam um artigo seu, discurso ou conferência, com referências à sua nova fé, leio-o com a maior atenção e maior respeito. Erros de doutrina, provas evidentes de desconhecimento do que é a fé católica, do que é a vida da Igreja, tenho-os encontrado muitos nos escritos do Sr. Coelho Netto, mas todos comuns, por demais vulgares em nosso meio, e, por isto, jamais julguei necessário combatê-los, principalmente porque é a própria Igreja militante quem permite no Brasil todas as confusões e todos os sofismas. Não são de ontem as suas homenagens a um dos órgãos que mais se têm feito notar, como propagandista do espiritismo? 

Deparo-me, agora, porém, com um fato de caráter singular na doutrinação, sempre gongórica, sempre exaltada, mas pouco malfazeda, do ilustre professor de declaração. Digo-o singular porque — a não considerá-lo produto de ignorância, tão grande que seria de estranhar até num homem de poucas letras, — ele revela uma especiosa má fé, ainda mais estranhável, e, certo, para lastimar, num homem como o Sr. Coelho Netto, cujo temperamento quis parecer sempre o de um combativo, falando alto, lutando de frente, tendo a coragem das suas atitudes, inimigo de rodeios e reticências, sempre com a boca cheia de palavras e retumbâncias de sinceridade.  

Mas vejamos de que se trata.  

Está no Rio, promovendo a atenção nacional para a sua longínqua arquidiocese, o Sr. D. Aquino Corrêa, arcebispo de Cuiabá, escritor e poeta de mérito e um dos mais brilhantes e distintos oradores sacros da hora presente.  

S. Ex. Reverendíssima fez, há poucos dias, um discurso ou conferência — não sei muito bem — no Instituto Nacional de Música.  

Doente, não pude comparecer àquela festa, onde estava, no entanto, pelo coração, pois não é de agora que dedico ao fúlgido espírito do conferencista, além de respeitosa admiração, a maior simpatia, tão seguro é o meu conhecimento dos sacrifícios da sua vida, das agruras do seu apostolado.  

Pois bem: o Sr. Coelho Netto estava entre os que ouviam o Sr. D. Aquino, e tanto o comoveram as palavras de S. Ex. que quis dar público testemunho da sua admiração. E daí o artigo no “Jornal do Brasil” de domingo último¹, artigo que é o causador do que ora escrevo.  

Em verdade, do Sr. D. Aquino, numa hora festiva, e falando a um público heterogêneo, não se poderia esperar que caísse no mau gosto das objurgatórias contra os inimigos da Igreja. Creio mesmo, não lhe ficaria bem, àquela hora, uma explanação de caráter rigidamente doutrinário, e acredito, portanto, que não o tivesse feito.  

Mas será possível que S. Ex., em tal discurso, tivesse esquecido o seu caráter de sacerdote da Igreja Católica, a tal ponto que pudesse inspirar ao Sr. Coelho Netto o imprudente e insensato elogio com que acaba de brindá-lo? 

Eis em que, positivamente, não acredito.  

Mas que quer fazer crer o ilustre acadêmico? 

Aqui fica um trecho do seu artigo — que, por ser longo, nem assim posso deixar de o citar integralmente: 

“Ora, um sacerdote que, revestido dos hábitos talares, consegue fazer vibrar o povo, levantar-lhe a alma, infundir-lhe coragem, conduzi-lo para o bem, não flagelando-o com tagante, não amedrontando-o com absurdos de inferno, penas eternas e outras velharias que a Igreja começa a varrer da sua nave e a espanar dos seus livros, mas pela harmonia do canto que é o verdadeiro condutor da Crença, como o entendeu Moisés, que na travessia do Mar Vermelho, mandou para a frente do Êxodo, Miriam, sua irmã, pulsando o Kinnareth e cantando, esse é um sacerdote de Cristo, um verdadeiro ministro do Senhor. 

O Padre é pastor e os pastores reúnem e guiam os seus rebanhos ao som módulo da flauta. Um destes sacerdotes evangélicos, sacerdote pastor vi eu, há dias.” 

E explica: esse sacerdote é o Sr. D. Aquino Corrêa. 

Pois é crivel, pois é possível que haja quem tenha podido ver no arcebispo de Cuiabá um sacerdote que de leve sequer possa parecer com esse tipo ideal do sacerdote para o Sr. Coelho Netto? 

Deixemos de lado o arroubo poético do padre pastor, guiando o rebanho “ao som módulo de flauta”. Nem há dúvida que a verdadeira alegria habita a alma do verdadeiro sacerdote e é do Evangelho o conselho: “Sêde alegres!” Não há crente católico que ignore que a verdadeira alegria vem do Espírito Santo. 

Mas como um bispo poderia, por outro lado, dar a impressão de ser um sacerdote para quem sejam absurdos o inferno e as penas eternas, por exemplo? 

Não está se vendo a especiosidade, a má fé, enfim, do Sr. Coelho Netto? 

E agora um apelo à sua dignidade intelectual: desafio-o a que aponte um só, um único livro católico em que haja uma só, uma única palavra que justifique esta asserção sua, que me dou ao trabalho de repetir: 

“absurdos de inferno e penas eternas e outras velharias que a Igreja começa a varrer da sua nave e a espamar dos seus livros.” 

Mas não fica ai a má fé do Sr. Coelho Netto. Para dizer que o Sr. D. Aquino não falou do céu nem de Deus naquele seu discurso, de caráter essencialmente patriótico (o que, se verdade, é para lastimar-se profundamente), eis a maneira ainda mais insidiosa por que o faz: 

“E a tal auditório que disse o sacerdote insigne? Falou do Céu? Não, porque todos ali acreditavam em Deus. Falou do inferno? Não, porque não havia ali crianças nem estultos; falou da Pátria, que é também uma religião para os que a amam.” 

Que quer fazer crer, repito, o ilustre acadêmico? 

Deu-lhe, por acaso, o Sr. D. Aquino, o direito de poder dizer dele que julga também estulto quem acredita no inferno? 

E supõe o Sr. Coelho Netto que um bispo só tem o dever de falar em Deus aos que n’Ele não crêem? 

O Sr. Coelho Netto está enganado. Nem mesmo para um Bispo, nem mesmo para um Papa, os dogmas da Igreja não se apresentam assim como os adjetivos na sua obra, que se conservam ou tiram a vontade, conforme soem bem ou mal ao ouvido, esta ou aquela hora. 

O Sr. D. Aquino, nós e o Brasil inteiro o conhecemos, e sabemos, de ciência certa, que, de modo algum, poderá ter inspirado ao Sr. Netto uma tal concepção ao sacerdote católico. 

E lastimamos, sinceramente, descobrir, pela primeira vez, na atuação espírita do Sr. Coelho Netto, não só a ignorância doutrinária, mas algumas gotas muito doces, mas muito parecidas com as do que Veuillot chamava “o alambique de Sainte-Beuve”. 

Gazeta de Notícias, 21 de julho de 1926


¹ O artigo de Coelho Netto, intitulado “Ecce Sacerdos!”, pode ser lido por meio do endereço abaixo:

http://memoria.bn.br/DocReader/030015_04/48093