Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

Sermão I sobre a Quaresma

Papa São Leão Magno

I. Os benefícios da abstinência — mostrados por meio do exemplo dos Hebreus

Nos tempos longínquos, quando o povo hebreu e todas as tribos de Israel eram afligidos por seus pecados escandalosos, sob a severa tirania dos filisteus, para que pudessem vencer seus inimigos — conforme afirma a história sagrada –, eles restauraram sua força mental e física através da injunção do jejum. Pois eles haviam compreendido que mereceram tão difícil e infortunada submissão por negligenciarem os mandamentos divinos e por seu mau comportamento.  Perceberam, pois, que seria em vão uma luta com armas a menos que, antes, resistissem a seus próprios pecados pela primeira vez. Desse modo, ao se absterem de comida e bebida, puderam aplicar a disciplina da auto-correção rigorosa e, para que derrotassem seus inimigos, antes o fizeram com as tentações de seus próprios paladares. E assim ocorreu que seus ferozes opositores, cruéis estrategistas, foram sobrepujados enquanto o povo hebreu jejuava, justo aqueles a quem estes se submetiam quando estavam alimentados. 

Também nós, meus queridos, que somos postos em meio a tantos conflitos, podemos ser curados se, com um pouco de zelo, nos utilizarmos desses mesmos meios. Pois nosso caso é quase similar ao dos hebreus, visto que, se eles foram atacados pelos inimigos da carne, nós o somos pelos do espírito. E, se podemos suplantá-los pela Graça de Deus que nos permite que corrijamos nossos modos, a força dos inimigos do corpo também se esvairá diante de nós; e, por nossa auto-correção iremos enfraquecer aqueles que nos foram formidáveis, não por mérito deles, mas por nossas próprias falhas.

II. Use a Quaresma para vencer o inimigo e, assim, prepare-se para o Tempo Pascoal

Consequentemente, meus queridos, para que possamos superar todos os nossos inimigos, procuremos o auxílio divino pela observância da oferta celestial, sabendo que não podemos prevalecer sobre eles, a menos que prevaleçamos sobre nós mesmos. Pois temos muitos encontros conosco: a carne deseja o oposto do espírito e o espírito, o oposto da carne. E, nesta discordância, se os anseios do corpo forem mais fortes, a mente desgraçadamente perderá a sua dignidade, o que será desastroso demais para que sirva o que deveria ter governado. Porém, se a mente, sujeita ao seu Governante, deleitar-se nos presentes do Céu, terá pisoteado as seduções do prazer terreno e não terá permitido que o pecado reine em seu corpo mortal; a razão manterá uma supremacia bem ordenada e as suas fortalezas não serão derrubadas por nenhuma fraqueza ou perversidade espiritual: pois o homem só encontra paz e liberdade verdadeiras quando a carne é governada pelo juízo da mente e a mente é dirigida pela vontade de Deus. Tal estado de preparação, caríssimos, deve ser sempre mantido para que nossos inimigos — em constante vigília — possam ser vencidos por uma diligência incessante, que necessita ser mais ardentemente procurada e cultivada com zelo, pois é justo aí que os projetos de nossos sutis opositores são conduzidos com estratégia e intensidade maiores do que nunca. Por saber que os dias mais sagrados da Quaresma estão por vir, de modo que toda a tibieza anterior será castigada, todas as negligências assim alertadas, os opositores dirigem todo o seu esforço a esta única missão, onde aqueles que pretendem comemorar a Páscoa Sagrada do Senhor podem estar impuros em alguma questão, e essa causa de ofensa pode ser um empecilho justamente onde a propiciação deveria ter sido obtida.

III. Lutas são necessárias para provar nossa fé

Conforme nos aproximamos, meus amados, do início da Quaresma, que é um momento para servirmos mais cuidadosamente ao Senhor, porque estamos, por assim dizer, entrando em uma espécie de concurso em boas obras, preparemos nossas almas para lutar contra as tentações e compreendamos que, quanto mais zelosos formos para nossa salvação, mais intensas devem ser as investidas de nossos oponentes. Mas mais forte é Ele que está em nós do que Aquele que está contra nós 1 João 4: 4, e através dEle somos poderosos em cuja força confiamos: porque foi por isso que o Senhor se permitiu ser tentado pelo tentador, para que possamos ser ensinados por Seu exemplo, bem como fortificados por Seu auxílio. Porque Ele conquistou o adversário, como você já deve ter ouvido, por citações da lei, não pela força real, que por isso mesmo ele deveria realizar uma honra ainda maior ao homem e infligir uma punição maior ao adversário sobrepujando o inimigo do homem, não como Deus, mas agora como Homem. Ele lutou; portanto, nós também podemos lutar depois disso. Ele derrotou o inimigo; portanto, nós também podemos derrotar. Pois não há obras gloriosas, bem-aventurados, sem as provações das tentações; não há fé sem prova,ou batalha sem inimigo, nem vitória sem conflito. Este mundo está repleto de armadilhas, repleto de batalhas; Se não quisermos nos enganar, devemos assistir: se quisermos vencer, devemos lutar. Assim como diz  Salomão, o mais sábio: “Meu filho, ao se aproximar do serviço de Deus, prepara tua alma para a tentação” Ec 2: 1. Pois Ele, que é homem cheio da sabedoria de Deus, e sabendo que a busca da religião envolve lutas laboriosas, prevendo também o perigo da batalha, advertiu o combatente vindouro, por receio de que, se o tentador o encontrasse em sua ignorância, feri-lo-ia sem que ele sequer percebesse.

IV. A armadura do cristão tão somente para a defesa como também para o ataque

Portanto, meus amados, permitamos que, retamente instruídos no aprendizado divino que nos vem sempre no vivemos um conflito, ouçamos o Apóstolo quando ele diz: “Pois nossa luta não é contra carne e sangue, mas contra principados e poderes, contra os governantes deste mundo em trevas, contra a maldade espiritual nas coisas celestiais.” (Efésios 6:12). Que não nos esqueçamos de que estes nossos inimigos sentem que é contra todos eles que lutamos ao nos esforçarmos por nossa salvação e que, pelo próprio fato dessa busca ser um Bem, estamos desafiando-os. Pois esta é uma antiga querela entre nós e eles que, fomentados pelos desejos malignos do Diabo, são torturados por nossa redenção, visto eles perderam aquela bem-aventurança para qual nós, com o auxílio e Graça de Deus, estamos avançando. Se, destarte, estamos de pé, eles estão prostrados; se estamos fortalecidos, eles estão enfraquecidos. Nossas curas são seus golpes, porque são feridos pela cura de nossas lesões. Portanto, ponde-vos de pé, amados, como diz o Apóstolo, “e cingi os rins com a verdade e revesti-vos com a couraça da justiça e calçai os pés com zelo para propagar o Evangelho da paz, empunhando sempre o escudo da fé, com o qual podereis extinguir os dardos inflamados do Maligno” (Efésios 6: 14-17). Vejam, estimados, com quão poderosas armas, com as com que indestrutíveis defesas ​somos armados por nosso Líder, famoso por seus muitos triunfos, o Mestre invencível da guerra cristã. Ele abriu nossos lombos com o cinto da castidade, Ele calçou os pés com os laços da paz: porque o soldado sem cinto é rapidamente vencido pelo instigador da imodéstia, e aquele que é despreocupado é facilmente mordido pela serpente. Ele nos deu o escudo da fé para a proteção de todo o nosso corpo; Em nossa cabeça Ele pôs o elmo da salvação; Nossa mão direita foi fornecida com uma espada afiada, que é a palavra da Verdade: que o guerreiro espiritual não só esteja a salvo de feridas, mas que também possa ter forças para ferir seu agressor.

V. A abstinência não só de comida, mas de outros desejos do mal, especialmente da ira, é necessária na Quaresma

Confiando, destarte, mui estimados, em tais armas, entremos ativa e bravamente nesta disputa que se trava diante de nós: para que, nesta luta que é o jejum, não fiquemos satisfeitos com se este fosse um fim em si mesmo, nem pensemos que somente que a abstinência de comida é suficiente. Pois não basta que a fração de nossa carne seja reduzida, se a força do espírito não for também desenvolvida. Quando o homem exterior estiver um pouco subjugado, permita que o homem interior seja um pouco revigorado; e quando a fartura for negada à nossa carne, permita nossa mente seja restaurada por delícias espirituais. Que cada cristão se examine e procure severamente no mais íntimo de seu coração: que ele note que nenhuma angústia se prende ali, que nenhum desejo maldoso seja acolhido. Permita que a castidade retire dali todo descontrole; Permita que a luz da verdade dissipe as sombras do engano; Deixe que a turgescência do orgulho diminua; Deixe que a ira ceda à razão; permita que os dardos de maus-tratos sejam quebrados, e os cantos da língua sejam frouxos; Deixe o pensamentos de vingança cair, e as mágoas serem entregues ao esquecimento. Em verdade, deixe que toda planta que o Pai Celeste não plantou seja removida pelas raízes (Mateus 15:13). Pis as sementes da virtude só são bem nutridas em nós, quando todo germe estrangeiro é desarraigado do campo de trigo. Se alguém, portanto, foi abatido pelo desejo de vingança contra o outro, de modo que ele o entregou à prisão ou o encadeou com correntes, deixe-se apressar-se a perdoar não só ao inocente, mas também àquele que parece digno de castigo, para que, com confiança, faça uso da cláusula na oração do Senhor e diga: Perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores. A petição que o Senhor marca com especial ênfase, como se a eficácia do conjunto se baseasse nesta condição, dizendo: Pois, se perdoardes os pecados dos homens, o vosso Pai que está nos céus também te perdoará; mas, se não perdoardes aos homens, eis que o seu Pai também não perdoará os vossos pecados.

VI. O uso correto da Quaresma levará a uma participação feliz da Páscoa

Consequentemente, bem-amados, tendo consciência de nossa fraqueza, porque nós caímos facilmente em todos os tipos de falhas, não negligenciemos esse remédio especial e a cura mais efetiva de nossas feridas. Permitamos que possamos ter uma remissão: conceda o perdão que desejamos; não fiquemos ansiosos para nos vingarmos enquanto rezamos para sermos perdoados. Que não passemos pelos gemidos do pobre com ouvidos surdos, mas que, com bondade pronta, concedamos nossa misericórdia aos necessitados, para que possamos merecer a piedade no julgamento. E aquele que, auxiliado pela graça de Deus, sacrificará cada músculo por essa perfeição, manterá este santo jejum fielmente; “Livre do fermento da velha iniqüidade, no pão ázimo da sinceridade e da verdade” 1 Coríntios 5: 8, ele alcançará uma Páscoa abençoada, e pela novidade da vida se alegrará dignamente no mistério da reforma do homem por meio de Cristo nosso Senhor, que com o Pai e o Espírito Santo vivem e reinam por todos os séculos dos séculos. Amém.


Traduzido por Isabel Serra a partir da versão inglesa disponível em <http://newadvent.org/fathers/360339.htm>.