Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

Abílio de Noronha

Jackson de Figueiredo

Se o renome não fosse um acidente!

Sempre me impressionou, sempre me comoveu esta frase de Thomaz Carlyle, assim, uma expressão, que por ser dubitativa, ainda faz ressaltar mais vivamente a amarga constatação do homem de gênio.

E, ontem, quando recebi a notícia da morte de Abílio de Noronha, um simples general do Exército Brasileiro – deste pobre Exército que, devendo ser a honra e a dignidade da nação, tem sido um mártir da nossa instabilidade política, o maior atestado de que os povos, como os indivíduos, não podem viver sem uma base de fixidez doutrinária – quando recebi a notícia dessa morte quase obscura, noticiada pelos jornais desta grande cidade, quase a medo sem comentário outro que não o de uma entrega, ao futuro, dos juízes possíveis sobre a sua personalidade, quando notei tudo isto, o que primeiro me lembrou foi justamente a exclamação tão profundamente carlyleana:

Se o renome não fosse um acidente!

Abílio de Noronha foi, que eu conhecesse, um testemunho vivo desta aparente cegueira das coisas humanas. Não teria a envergadura dos heróis de verdade, como não teve a dos heróis de papelão, que a imprensa do Rio tanto tempo lhe contrapôs, sob uma chuva de sarcásticas reticências…

Mas poderia ter sido um dos nomes mais acatados, mais respeitados, mais veneráveis, mesmo dentro, na fronteira do grupo político a que deu o seu apoio, desde o princípio da luta revolucionária, em que nos debatemos e morreu, no entanto, por mera infelicidade, sentindo todas as desconfianças, revoltado e amargurado, ante o malicioso olhar dos seus contemporâneos.

Mas a justiça completa há de ser feita ao seu nome, pelo menos em relação ao fato culminante que, em sua vida, marcou o declínio, o desgosto, e a inabalável certeza da ingratidão dos homens. Representando a Justiça, a cujas iras, o atiravam, teve Abílio de Noronha a ampará-lo, o que no seio dela representavam homens de bem como Carlos Costa e Washington de Oliveira. E como quase sempre acontece, foi da parte dos que o olhavam como inimigo perigoso, da parte dos que foram instrumento de sua má sorte, que vejo o primeiro testemunho de “opinião pública” em favor de sua boa-fé, em meio do desastre, e da lealdade com que servira àqueles que, verificada a inesperada anulação dos seus esforços, o repudiaram, ou, pelo menos, o deixaram ficar, sem outra defesa que não a da sua própria ofendida dignidade, sobre a areia movediça das suspeitas mais cruéis…

Conhece-se a autorizada confissão de Juarez Távora, por exemplo: Abílio de Noronha, comandante da 2ª Região Militar, cujo apoio teria sido “o triunfo militar da causa dentro de S. Paulo”, não negociou com a revolução, nem fez de modo algum o jogo soez das dubiedades acomodatícias com a vitória…

Mais ainda: surpreendido pelo levante das forças em que cegamente confiava — enojado, como se mostrava há tempos, e disto dou testemunho, com a atmosfera de suspeição policial, que pairava sobre a sua classe — Abílio de Noronha tudo fez (que não fosse morrer heroica e inutilmente, talvez), para sufocar a onda de rebeldia, não se podendo negar, diante dos depoimentos mais sérios, hoje em dia conhecidos, que esteve prestes a realizar o que o seu indignado coração e a sua consciência de soldado tão ardentemente lhe ordenavam.

E principia então o obscuro martírio deste homem de bem, que não me pejo de qualifica-lo assim, em todo o rigor da expressão, porque, fossem quais fossem os seus erros, ainda há pouco insinuados pelos seus desafetos, o fato é que se remiu de todos eles pela dignidade com que afrontou a derrota e as consequências da derrota.

E, no entanto, preso pelos revoltosos de S. Paulo, Abílio de Noronha NEM EM TEORIA aceitou uma conciliação, a mais disfarçada que fosse, com o erro, aparentemente vitorioso, então, dos seus camaradas, nem a mais leve diminuição do princípio de ordem e autoridade, que convictamente representava.

Mas a desgraça tem dessas ironias demoníacas…

Não é do lado da revolta que lhe veio o mais amargo da derrota, a humilhação em doses bem medidas…

Ele assistiu à “revanche” dos que representavam a mesma autoridade por quem se batera… E tanto quanto lho permitia a dignidade e a honra militar — de militar vencido pelas circunstâncias mais cruéis — tanto quanto lho permitiam, que não fez Abílio de Noronha para vingar a sua boa fé ultrajada, para vingar o seu irreconciliável destino?

Mas não partia dos homens, propriamente, e, sim, daquela negra, tenebrosa hora da nossa vida política, a desconfiança — que o diminuía e revoltava, mas revoltava como se revoltam os bons, os que naturalmente se integram num sistema de superiores sacrifícios a uma ordem superior.

Duas vezes, tão somente, conversei com Abílio de Noronha após o grande desastre da sua vida. E o meu testemunho, tão absolutamente desinteressado quanto o pode ser um testemunho humano, é este, será sempre este: ao sair da presença daquele homem que, sob a linha exterior de energia e de mando, agonizava na maior das indignações, levava comigo a convicção, que nada poderá abalar, de que falara a um homem de bem, e capaz dos maiores sacrifícios pelo Brasil.

Abílio de Noronha foi, simplesmente, um militar infeliz.

Se o renome não fosse um acidente…

Gazeta de Notícias, 28 de dezembro de 1927