Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

Segundo Sermão para o Segundo Domingo depois da Epifania

São Bernardo de Claraval 

“Como viesse a faltar vinho, a mãe de Jesus disse-lhe: “Eles já não têm vinho”. Respondeu-lhe Jesus: “Mulher, isso compete a nós? Minha hora ainda não chegou”. Disse, então, sua mãe aos serventes: “Fazei o que ele vos disser”. Ora, achavam-se ali seis talhas de pedra para as purificações dos judeus, que continham cada qual duas ou três medidas. Jesus ordena-lhes: “Enchei as talhas de água”. Eles encheram-nas até em cima. (Jo II;III-VII) 

No que diz respeito às obras de Cristo, meus irmãos, mentes menos penetrantes podem encontrar alimento na contemplação do seu exterior, ao passo que almas com faculdades mais desenvolvidas através da prática, descobre, mais abaixo da superfície, um alimento mais sólido e amável, como se fosse o sebo e a essência do grão. Por causa de seus aspectos exteriores, as obras de Jesus são uma fonte de deleito, mas é muito mais do que uma fonte de deleito em sua intrínseca virtude: assim como Ele é Ele mesmo “Sois belo, o mais belo dos filhos dos homens.” (Salmos XLIV, III), mesmo externamente, enquanto internamente Ele é “Brilho da Luz Eterna” (Sabedoria VII, XXVI), ofusca os olhos dos próprios anjos. Externamente, Ele aparenta ser um homem inofensivo, Humanidade sem pecado, Cordeiro sem mancha. Oh, “Como são belos sobre as montanhas os pés do mensageiro que anuncia a felicidade, que traz as boas-novas e anuncia a libertação” (Is LII, VII). Mas além da comparação é a beleza e a glória de Sua Cabeça, uma vez que “A Cabeça de Cristo é Deus” (I Cor II, III). É sem dúvida um prazer contemplar um Homem o qual o pecado não teve acesso, e bem-aventurados são olhos tão privilegiados: mas muito mais “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus” (Mt V,VIII). Portanto, quando o Apóstolo penetrou no interior, ele não mais considerou a aparência extremamente bela, embora a fosse, porque ele disse, “Muito embora tenhamos considerado Cristo dessa maneira, agora já não o julgamos assim” (II Cor V, XVI). Isso estava de acordo com a profecia do Senhor, que havia declarado “O espírito é que vivifica, a carne de nada serve” (Jo VI, LXIII). E essa é a sabedoria com a qual São Paulo falou “entre os perfeitos” (I Cor II, VI), não entre aqueles os quais, como foi lido, ele falou dessa maneira, “Julguei não dever saber coisa alguma entre vós, senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado” (ibid, II). Tudo, na verdade, acerca de Jesus é amável, tudo saudável, tudo deleitável, pois “Ele é todo adorável” (Can V, XVI), de acordo com o testemunho da Esposa no Cântico.  

Agora, o que eu tenho mostrado ser a verdade sobre Ele mesmo, você encontrará igual a verdade de Suas obras. Por serem consideradas externamente, fora de sua superfície, suas aparências parecem ser extremamente belas. Mas se alguém quebrar a casca, por assim dizer, ele descobrirá, em seu interior, que é muito mais do que amável e deleitável. Você não o encontrará assim como eventos registrados na história dos pais dos Antigos Acontecimentos. Embora o significado místico de suas ações é sempre belo e prazeroso, elas, mesmo assim, se visualizadas nelas mesmas, serão encontradas, às vezes, sem valor, como, por exemplo, a enganação de Jacó ao seu pai (Gen XXVII), e os crimes do Rei Davi (II Reis XI). O alimento oferecido a nós é extremamente precioso, embora o prato em que ele é servido são indignos o suficiente. E talvez fosse com referência a tais ações dos Patriarcas que o profeta salmodiou, “Envolveu-se nas trevas como se fossem véu, fez para si uma tenda das águas tenebrosas, densas nuvens” (Salm XVII, XII), porque eles eram, na verdade, nuvens tenebrosas. Mas ele acrescentou imediatamente, falando do Senhor, “Do esplendor de sua presença suas nuvens avançaram: saraiva e centelhas de fogo” (ibid. XIII).  

Eu creio que você adivinhara o meu propósito em fazer essas observações. Pois você já ouviu falar do dia do milagre descrito nas bodas de Caná, o primeiro dos milagres de Cristo, a história da qual é tão admirável quanto sua significação mística é consoladora. Foi, sem sombra de dúvida, uma prova esplêndida da Divindade de Cristo que com sua ordem, transformou água em vinho. Todavia, mais maravilhoso ainda é “a destra do Altíssimo não é mais a mesma” (Salm LXXVI, XI) o que essa transformação representa. Porque nós todos somos convidados para as núpcias espirituais na qual Cristo Nosso Senhor é o Noivo. Consequentemente, nós cantamos nos Salmos, “E este, qual esposo que sai do seu tálamo” (Salm XVIII, VI). E a Noiva? Nós mesmos, meus irmãos, somos a Noiva, embora possa parecer incrível para você; nós todos somos, coletivamente, uma mesma Esposa do único Cristo, e, além disso, nossas almas individuais são, por assim dizer, Noivas individuais. Mas quando nossa fragilidade estará apta para acreditar nisso de Deus Nosso Senhor, que Ele ama cada um e todos como tão ternamente quanto uma noiva é amada pelo seu noivo? Pois em nosso caso, a Noiva é inferior ao Noivo, inferior na natureza, inferior na beleza, inferior na dignidade. No entanto, por causa desta Noiva Etíope, o Filho do Pai Eterno veio de longe; e, para defendê-la para Si mesmo, Ele não hesitou em morrer para a sua redenção. Moisés, de fato, tomou uma mulher etíope como sua esposa (Ex II, XXI), mas ele não estava apto para mudar a sua cor; enquanto que a Noiva amada e unida por Cristo, enquanto ainda vil e desagradável. Ele irá, daqui em diante, “para apresentá-la a si mesmo toda gloriosa, sem mácula, sem ruga, sem qualquer outro defeito semelhante, mas santa e irrepreensível” (Ef V, XXVII). O que Arão haveria de se queixar? O que Maria também haveria de murmurar? Não creio que a nova Maria, não a velha; não a Mãe do Senhor, mas a irmã de Moisés (Num XII, I). Não a nossa própria Maria, eu repito, pois ela é bastante solícita para que nada falte na festa de casamento. Mas, ao passo que os sacerdotes e a Sinagoga murmuram e queixam-se, vocês, meus irmãos, como certo, dedicam-se a agradecer a Deus com todo o coração pelo singular favor que Ele tem vos mostrado ao escolher-vos como Sua Esposa.  

Por que isso para ti, ó alma humana, por que isso para ti? Para o que tu deves a glória tão inestimável a ser considerada digna em se tornar Sua Noiva? “Revelações essas que os próprios anjos desejam contemplar” (I Pd I, XII)? Como mereceu tê-Lo por seu Esposo a Quem a beleza do sol e da lua ficam maravilhados, cujos os comandos mudam o curso do universo? Ó, “Mas que poderei retribuir ao Senhor por tudo o que ele me tem dado?” (Salm CXV, III). Pois Ele te fez companheiro de Sua mesa, o companheiro de Seu trono, companheiro de Sua poltrona, sim, o Rei tem vos trazido até os Seus aposentos. Veja agora quais sentimentos tens do teu Deus; veja agora até onde podes presumir com Ele; veja agora com quais braços de vicária caridade, com a qual se retribuiu a afeição, tu deves adotar Aquele que tem vos estimado altamente, mais preferivelmente, Aquele que te fez digno de ser altamente estimado. Pois Ele te formastes de Seu próprio Lado, quando por tua causa, Ele repousou sobre a Cruz, quando Ele sofreu o sono da morte para vencê-la. (Gen II, XXI). Por tua causa “e que saíra de Deus e para Deus voltava”, Seu Pai (Jo XIII, III), e deixou a Sinagoga, Sua Mãe, para que assim pudesse se unir a Ele e se tornar um só espírito com Ele (Gen II, XXIV; I Cor VI, XVII). Portanto, “Ouve filha e vê” (Salm XLIV, XI), e considere ótimo como tem sido a divina condescendência para com você. “Esquece o teu povo e a casa de teu pai” (ibid.), quer dizer, renuncia tuas afeições carnais, esquece as maneiras e os costumes do mundo, abstenha-se do seu pecado passado, expulse da memória os seus hábitos viciosos. O que você pensa? Seria algo surpreendente ouvir que “o anjo do Senhor, que empunha a espada, prestes a cortar-te em dois” (Dan XIII, LIX), se – que Deus impeça! – tu amasses alguém além dEle mesmo? Pois já foste convocado a Ele, o café da manhã matrimonial já começou, e o casamento está sendo preparado no céu, no salão eterno. Há alguma razão para temer para que o vinho não falte na festa do casamento?  Deus proíba! Por isso, como disse o salmista, falando do Senhor, “Eles se saciam da abundância de vossa casa, e lhes dais de beber das torrentes de vossas delícias” (Salm XXXV, IX). Ó, sim: um rio inteiro de vinho é preparado para aquela ceia do casamento, e o vinho o qual “que alegra o coração do homem” (Salm CIII, XV). Pois “Os braços de um rio alegram a cidade de Deus, o santuário do Altíssimo” (Salm XLV, V). Mas, ao mesmo tempo, na medida em que nós “tens um longo caminho a percorrer” (I Reis XIX, VII), nós estamos aqui abaixo fornecidos com o café da manhã, mas não para a saciedade, pois saciedade e abundância estão reservadas para a ceia eterna. Aqui, portanto, o vinho algumas vezes pode acabar, quer dizer, a graça da devoção pode ser perdida e o fervor da caridade crescer morno. Quantas vezes, meus irmãos, após ouvir suas lamentações, eu não sou obrigado a suplicar a Mãe da misericórdia a apresentar ao seu Filho mais gracioso que não há mais vinho. Eu digo a vós, queridos filhos, se nós devotamente chamarmo-na, ela não se fará ausente às nossas necessidades, pois ela é misericordiosa e a Mãe da misericórdia. Pois se ela lamentou a dificuldade daqueles que convidaram-na para uma festa terrena, mais compaixão ela terá para conosco, se nós apenas invocá-la com afeto: porque estas nossas núpcias são mais uma razão de alegria e preocupação para com a Mãe de Jesus do que foram aqueles da Caná da Galiléia, desde o seu ventre como da câmara nupcial, nosso Esposa celestial emitiu. 

Mas, meus irmãos, qual de nós pode ajudar a sentir dolorosamente a resposta dada por Deus àquela festa de casamento para Sua própria e mais amável e santa Mãe: “Mulher, o que há de comum entre mim e ti?” Tu perguntas, Senhor, o que há em comum entre Ti e a Virgem? Não é tudo isso que é comum entre vós o que é comum para a criança e a sua mãe? Tu perguntas de qual forma estás relacionado a Ela do qual o ventre imaculado Tu és o Fruto bendito? (Lc I, XLII). Não é Ela a mesma que Te concebeu sem violar a sua virgindade, e deu a luz, permanecendo ainda a virgem inviolada? Não é Ela a mesma em cujo ventre Tu habitaste durante nove meses, em cujo seio virginal Tu foste amamentado, com quem, quando Tu tinhas 12 anos, Tu desceste de Jerusalém, e estava submisso a ela? (Lc II, XXXI). Agora, portanto, ó Senhor, por que és Tu incômodo para ela, dizer, “Mulher, o que há de comum entre mim e ti?” Certamente há “muito, em todos os aspectos” (Rom III, II). Mas eu agora entendo claramente que não era como se fosse de forma raivosa, ou com o desejo de confundir a tenra modéstia de Tua Virgem Mãe, Tu disseste a Ela, “Mulher, o que há de comum entre mim e ti?”, para quando os garçons viessem a Ti, de acordo com as instruções de Tua Mãe, Tu fizeste sem atraso aquilo que Ela sugerira. Por que, então, meus irmãos, Ele primeiro deu a Ela uma resposta tão estranha? Isso foi, sem dúvida, nossa instrução, para nos ensinar isso, após nossa conversão ao Senhor, nós não devemos nos permitir ser seduzidos pela preocupação para com os nossos pais de acordo com a carne, ou sermos distraídos dos nossos exercícios espirituais devido às suas necessidades temporais. Enquanto vivemos no mundo, nós estamos, indubitavelmente sob  obrigações aos nossos pais: mas quando nós renunciamos a nós mesmos, nós, da mesma forma, e muito mais, livramos nós mesmos de toda indevida preocupação para com eles. Daí a história nos falou de um certo monge que vivia na solidão do deserto. Sendo visitado um dia por seu irmão conforme a carne, o qual veio solicitar uma ajuda, ele o disse para solicitar o seu irmão outro irmão que havia morrido há muito tempo atrás. “Mas ele está morto”, exclamou o visitante com espanto. “Não mais morto do que eu”, respondeu o eremita.[1] Portanto, meus irmãos, isso nos faz entender claramente que nós não devemos ser mais solícitos aos nossos parentes terrestres do que requer a religião: foi dessa maneira, eu digo, que Ele disse a Sua própria mãe, e para tal Mãe “Mulher, o que há de comum entre mim e ti?” Então, novamente, em outra ocasião, quando informado por alguém que Ela estava com Seus irmãos esperando fora, desejando falá-lo, Ele exclamou “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?” (Mt XII,48). Onde estão agora aqueles religiosos que estão acostumados a terem preocupações vãs e mundanas por suas relações carnais como se eles ainda vivessem dentre eles? 

Mas vamos proceder com o que segue. “Agora havia ali”, diz o Evangelista, “seis talhas de pedra, para a purificação dos judeus.” A partir destas palavras nós podemos ver claramente que ainda não é a plenitude, mas somente a preparação para a festa de casamento, porque, a saber, ainda há uma necessidade de purificação. Portanto, o que é descrito aqui para nós não é a festividade do casamento ao todo, porém apenas os esponsais. Deus não permita que alguém espere ver vasos de purificação nas núpcias finais, quando Cristo, “para apresentá-la a si mesmo toda gloriosa, sem mácula, sem ruga, sem qualquer outro defeito”. (Ef V, 27) Para que necessidade haverá de purificação onde nenhum local será visível? Agora é tempo para limpar, agora as purificações são manifestadamente necessárias, quando nenhum homem está livre de manchas, nem mesmo a criança que viveu um dia sobre a terra.[2] Atualmente, portanto, a Esposa está sendo desinfetada, atualmente está sendo purificada, com isso, quando chegar a hora das núpcias celestiais, ela será apresentada imaculada ao seu Noivo celestial. Vamos, consequentemente, olhar para os seis potes de água que são destinados a servir para a purificação dos judeus, quer dizer, para a limpeza daqueles que confessam as suas faltas. Porque se nós dissermos que não temos pecado, nós enganamos a nós mesmos, e a verdade não está em nós (I Jo I, 8) – a verdade que sozinha pode nos libertar, a qual sozinha pode nos salvar, a qual sozinha pode nos purificar. Mas se nós confessamos os nossos pecados, como verdadeiros Judeus, então as talhas de água não faltarão para a nossa purificação, porque Deus é “fiel e justo para perdoar-nos os nossos pecados e limpar-nos de toda iniquidade.” (ibid. 9)  

Isso me parece, meus irmãos, que pelas seis talhas de água nós devemos entender seis observâncias instituídas pelos santos padres para purificar os corações daqueles que confessarem seus pecados; e, se eu não me engano, todas as seis podem ser encontradas neste mesmo mosteiro. Portanto, a primeira das espirituais talhas de água é a prática da continência, através do qual nós lavamos as manchas contraídas da sensual indulgência no passado. A segunda é o jejum porque empregamos a abstinência como um meio de de purificar o que a gula tem profanado. Pela preguiça também e ociosidade, os quais são inimigos da alma (Santa Regra de Sâo Bento, c. XLVIII), nós contraímos muita contaminação, comendo o nosso pão, não, como o Senhor ordenou, no suor da nossa própria testa, mas no suor dos nossos vizinhos. Nós temos, portanto, uma terceira talha colocada diante de nós no trabalho manual, pelo o qual nós podemos lavar a nós mesmos das manchas da preguiça. Novamente, nós temos cometido muitos pecados através da sonolência e os outros trabalhos da noite e da escuridão. Daqui há outra talha d’água estabelecida perante nós, isto é, a observância das vigílias regulares, através das quais nós nos levantamos à noite para confessar ao Senhor e nos redimirmos das noites que gastamos no mal. Mas a respeito da língua, quem não sabe o quanto de contaminação nós contraímos através da ociosidade falsas palavras, por meio da difamação e lisonja, por meio da malícia e discursos prepotentes? A quinta talha é simplesmente necessária para limpar-nos disso, e nós temos a observância do silêncio, o qual é o guardião da vida religiosa e a fonte da nossa retidão espiritual. A sexta talha é disciplina regular, pela qual nós não mais vivemos de acordo com os nossos desejos, mas com a dependência sob o desejo do outro, a fim de sanear a nós mesmos dos efeitos de nossa antiga licença. Estas talhas são pedregosas na sua solidez, no entanto não temos escolha senão nos lavar neles, isto é, a menos que desejemos receber a conta de divórcio do Senhor por causa de nossa imundície (Deut. XXIV, 1). Contudo, não é meramente por indicar sua solidez que eles são descritos como de pedra, mas também e mais particularmente por significar sua durabilidade; por menos que elas continuem firmes e estáveis, elas não podem nos tornar puros. 

Jesus então disse aos garçons, “Encha as talhas com água”. O que significa isso, ó Senhor? Os garçons estão perturbados pois o vinho acabou, e  tu dizes a eles, “Encha as talhas com água”? Eles estão pensando nos copos do banquete, e tu os ordena que encha os vasos para purificação? Era assim, meus irmãos, era assim o antigo, quando Jacó estava ansioso para abraçar sua querida Raquel, Lia, sua irmã, foi colocada secretamente em seu lugar por seu pai Labão (Gen. XXIX, 22-24). Nós, superiores, somos os garçons e servos da fraternidade; e sempre que o vinho acaba, nós somos mandados por Cristo para preencher a vós os vasos de água. É como se o Senhor dissesse a nós: “Os irmãos desejam devoção, eles querem vinho, eles estão pedindo por fervor; mas Minha hora ainda não chegou: encha as talhas com água.” Por que o que é a água da sabedoria, muito salutar, mas não tão suave, a menos que seja o temor do Senhor, que é a fonte da vida e início da sabedoria (Salm. CX, 10)? Portanto, a ordem é dada aos garçons: “Inspire-os com salutar temor; encha os vasos de seus corações com espírito de temor, pois eles devem começar a temer se eles desejam alcançar a caridade, para que eles também possam ser aptos para dizer como o Profeta, ‘Pelo Teu temor, Senhor, nós concebemos e geramos o espírito de salvação.’ (Is XXVI, 18).”[3]  

Mas como são as talhas a serem preenchidas? Para o Evangelista que nos conta que elas contêm “duas ou três medidas cada”. O que devemos entender por “duas ou três medidas cada”? Bem, há dois tipos de medo comum e familiar a todos, e um terceiro menos comum e menos conhecido. O primeiro tipo de medo é o medo de ser condenado aos tormentos do inferno; o segundo é o medo de ser excluído da visão de Deus e privado de uma glória tão inestimável; o terceiro inspira a alma com uma solicitude ansiosa para que ela nunca mereça ser abandonada pela graça. 

É verdade, meus irmãos, que cada espécie de temor do Senhor extingue a concupiscência pecaminosa, mesmo que a água extingua o fogo. Mas esse é especialmente o caso com o último medo mencionado, desde que se oponha à primeira de todas as tentações a fim de evitar a perda da graça: o resultado do qual a perda seria que um homem, deixado inteiramente por si próprio, cairia diariamente mais e mais baixo, de um grau de culpa para um mais profundo. Nós vemos vários que são imundos, vivendo dia após dia, crescendo ainda mais imundo. (Apo. XXII, 11) Pois diante desse medo, a alma não pode se iludir com o pensamento de que o pecado não é muito grave, ou com a esperança de se arrepender mais tarde. Tal auto-engano é usado para impedir o efeito dos dois outros tipos de medo, pelo menos até certo ponto. Portanto, o Senhor nos manda encher as talhas de água com a água dessas várias espécies de medo. Pois os vasos de água são, por vezes, vazios ou apenas preenchidos com ar. Isto acontece sempre que um homem tão insensato a ponto de permitir que o amor da vaidade anule sua recompensa eterna, aquelas observâncias das quais tenho falado – o que aconteceu com as tolas virgens cujos vasos foram encontrados vazios de óleo (Mat. XXV). Algumas vezes também – e isto é o pior – as talhas são encontradas de fato cheias, mas cheias de veneno, isto é, cheias de inveja, de murmuração, de rancor, de detração. Dessa forma, para prevenir tais coisas de preencherem as talhas quando o vinho acaba, nos dizem para preenchê-las com água; de modo que, entretanto, até o fervor reviver, as ordens do Senhor devem ser obedecidas com temor. Mas essa água deve ser transformada em vinho quando o medo é expulso pelo amor perfeito (I Jo IV, 18), e então todas as talhas serão preenchidas até a borda com fervor espiritual e devoção jubilosa.


Notas

[1] Aqui nós lemos a vida de Santo Apolo, cuja a memória é celebrada em 25 de janeiro. São Bernardo não crê que a pessoa religiosa deveria ter menos amor do que os outros para seus parentes – seu 26º Sermão do Cântico do Cânticos comporta o testemunho eloquente à ternura de suas próprias afeições naturais – mas que as solicitudes terrenas não permita distrair suas atenções das coisas de Deus. Cf. Sermons on the Canticle of Canticles, vol. i. p. 283,  note, (Mt. Melleray Translation). – (Translator)  

[2] “Nec infans unius diei sine sorde est super terram.” Isto afigura-se a uma livre tradução de Jó XIV, 4,5, de acordo com o grego.  

A Vulgata apresenta: “quis potest mundum facere de immundo concepte semine? Nonne Tu qui solus es”. Em Santo Agostinho (Confissões. I. VII.) nós encontramos   o seguinte “Nemo  mundus a peccato, nec infans cujus est unius diei vita super terram”, o qual dificilmente se difere da leitura de São Bernardo.  

[3] *“A timore tuo concepimus, Domine, et parturivimus spiritum salutis.” 

A Vulgata difere:“Concepimus et quasi parturivimus et peperimus spiritum. Salutes non fecimus.”  


Traduzido por Ruan Gabriel a partir da versão inglesa disponível em <https://coelifluus.wordpress.com/2017/01/17/st-bernards-second-sermon-for-the-second-sunday-after-epiphany/>.