Sociedade civil católica, destinada à difusão da Cultura Ocidental e à atuação política em defesa da família, em observância à Doutrina Social da Igreja.

As únicas esperanças

Jackson de Figueiredo

Quando o Sr. Epitácio Pessoa deixou a presidência da República, após ter ferido, como era lógico – dada a sua grandeza moral e a honestidade dos seus processos políticos – muitos e divertidíssimos interesses do mediocrismo que nos avassalava, não houve domínio da sua atividade que não sofresse injuriosa investida dos seus inimigos, todos sem uma única exceção, ou cegos de paixão ou cegos de nascença, ou irritados nas suas nauseantes vaidades ou acabestrados a validade alheias.

O Sr. Arthur Bernardes mesmo, (um homem de verdade, como viria a prová-lo em quatro anos de resistência à maschorca) o próprio Sr. Arthur Bernardes não soube ver que os ataques de então ao ex-presidente, visavam apenas o enfraquecimento, por dispersão, das forças que se contrapunham à desordem e à anarquia.

O Brasil todo, porém, pode admirar este exemplo de patriotismo: um homem como o Sr. Epitácio, com direito a todos os orgulhos e tido e apontado como um impetuoso, resistir a todas as insinuações e, por vezes, a mais justa indignação, mas não estender jamais a mão aos perturbadores da ordem, aos profissionais da calúnia e da injúria, aos exploradores, enfim, da nossa chamada opinião pública.

Ora, uma das notas mais constantes da má fé jornalística foi, aquela hora, que ao ex-presidente devíamos a inauguração de uma política exterior que acabaria por nos isolar no Continente. O Sr. Epitácio, louco de orgulho e incapaz de verificar a nossa fraqueza ante a coligação de interesses hispano-americanos, desprezava as regras do mais comecinho bom senso, só porque os Estados Unidos lhe haviam prestado a homenagem de um navio de guerra, que o trouxera ao Brasil… E a sua cegueira não podia distinguir, não só a real indiferença yankee com relação aos nossos destinos, mas também a antipatia natural do nosso povo a grande República do Norte…

Isto o que se dizia enquanto mesmo através a retórica otimista das Chancelarias, faz-se acentuando qual o povo ou quais os povos a quem o Brasil há longos anos aparece como fantasma de permanente ameaça, e a amizade entre os Estados Unidos e o Brasil como uma fonte perene de despeitos e recalcada animosidade…

Mas Deus não quis, positivamente, que o Brasil esquecesse por muito tempo que tem no Sr. Epitácio Pessoa o maior dos seus filhos, a perfeita individuação do seu patrimônio de cultura e moralidade.

E esta é que é a verdade pura, que é preciso ter sempre em vista: a personalidade do Sr. Epitácio transborda dos acanhados limites da nossa política interna. Ele é mais do que um político do Brasil. É uma força com que o Brasil conta para falar ao mundo civilizado, a linguagem da sua própria civilização, da sua cultura, da sua dignidade ocidental ou cristã.

Não há negar: de trinta anos a esta parte, isto é, desde que, para consolidação interna da República, sacrificamos nós, brasileiros, uma grande parte das nossas conquistas morais, no concerto dos interesses do Continente, a América do Sul, ou melhor, o império hispânico da América, forma uma vasta confederação de ambições nacionais liderada pelo enorme prestígio argentino. As lutas, as dissenções, dentro dessa harmonia de fato, são constantes, não resta dúvida, mas não chegam nunca a quebrar-lhe a unidade a constância, e nem ao menos lhe afetam os fundamentos.

Por outro lado, o colosso norte-americano é como um segredo a desvendar.

Não pode haver a menor dúvida que a sua influência na nossa vida interna, a sua influência na vida espiritual, na nossa vida social, é não só indesejável, é talvez francamente perigosa. Os processos do individualismo nos levariam, dentro de pouco, a mais completa desmoralização. Mas, se na própria América do Sul, em derredor de nós, num abraço formidável sobre as nossas fronteiras, um poderoso bloco, como os dois hispânicos, se não nos hostiliza francamente, não vive conosco em pé de legítima confiança, como esquecer as vantagens de uma harmonia política com o chamado imperialismo yankee, única força capaz, a nosso lado, de contrabalançar e até exceder de muito a força daqueles?

A nossa política tem que ser urdida, pois, na trama da mais sutil, da mais delicada capacidade de equilíbrio. Precisamos ficar a meio termo de todas as tendências que se digladiam no continente e não esquecer que não pequenos recursos nos poderão vir sempre das nossas origens europeias, da nossa filiação ao universalismo Cristão, base da nossa cultura social.

Pois bem: fora preciso estar como pude estar, em contato com o Sr. Epitácio Pessoa, numa grande assembleia como a que ultimamente se reuniu no Rio de Janeiro, com representantes de todos os particularismos americanos, para aprender a soma enorme de recursos morais, a imensa riqueza cultural de que ele dispõe quando, a serviço da nação, lhe cabe enfrentar essas forças, essas tendências contrárias, ou melhor, quando lhe cabe distinguir e selecionar entre temperamentos políticos tão diversos, tudo quanto o Brasil deve acolher, tudo quanto o Brasil deve juntar a sua experiência no domínio da política internacional, resguardando sempre o seu caráter próprio.

Na recente assembleia de jurisconsultos americanos só mesmo os cegos não perceberiam os pruridos de vaidade particularista com que ao tempo em que se proclama que a América deve ser pátria de fraternidade universal, se formulam protestos da mais inumana e artificial divisão no seio da cultura ocidental.

Foi ao Sr. Epitácio que coube sempre, graças a Deus, cortar as asas desse (palavra ilegível) ridículo. E mal sua palavra, serena e clara, se fez ouvir, pó ou por terra a aspiração mítica de um direito particular americano, de povos que, queiram ou não queiram, só merecem respeito na medida em que se conservam dentro dos limites da cultura cristã, que os criou, que os fez crescer e progredir, que os caracterizou, enfim.

Mas não era esta a mais difícil tarefa do delegado do Brasil, logo, de início, elevado a presidência daquela assembleia. Certas nuanças de linguagem certas aproximações menos disfarçáveis, foram, desde as primeiras sessões da comissão, deixando ver claramente ora, o imoderado desejo de dar a América do Norte um lugar de destaque, mas como em perfeito insulamento de tirania imperialista, ora, no próprio bloco hispânico, as desconfianças de grupos ocasionais, nascidos de remotos ou recentes conflitos da ordem dos fatos.

Pois ainda aí a ação do Sr. Epitácio foi verdadeiramente admirável, pela força incontrastável do seu enérgico bom senso e esplêndido sentimento de justiça e imparcialidade, tantas vezes postos em relevo por delegados dos mais diversos países e em defesa dos interesses mais opostos.

A vitória do bom senso do bom senso, da cultura, da honestidade brasileira, nesta grande assembleia, só não a terá reconhecido quem ignora que, do seio mesmo dos mais generosos idealismos, é que surgem as discórdias mais ásperas, se não os contém, aqueles, e harmoniza  uma consciência que também deles possuída, os alie, no entanto, a um severo poder de análise, a uma segura visão da realidade, que os enquadra.

E foi esse realmente, o papel do Sr. Epitácio Pessoa como presidente da comissão de jurisconsultos americanos. Possuído das mesmas generosas ambições, senão das mesmas respeitáveis ilusões, o Sr. Epitácio não esqueceu nunca que ali estava a representar um povo, uma cultura, uma realidade e não uma simples abstração no domínio da ética política ou do direito puro.

E como tal – levando a termo pela sua disciplinadora força de sugestão, tudo quanto de prático e realizável se lhe deparou naqueles debates – não foi jamais embalde o seu esforço para que amainassem as apostas bizantinas de uma ideologia desenfreada e de todo em todo sem correspondência com a vida real do continente.

Quando mais tarde se vier a fazer o balanço das conquistas morais, de facto alcançadas em toda a extensão dessa mais alta política, dessa política que ideais americanos, estou certo que há de realçar de modo soberano a atuação do grande brasileiro que é, incontestavelmente, a mais alta e a mais nobre e viva expressão da cultura política… Que nós, coletivamente, vamos perdendo ou malbaratando ao sabor de ambiciosos mashorqueiros e de não menos ambiciosos saltimbancos da nossa dubitativa ordem legal.

Porque esta é a verdade, infelizmente: do ponto de vista das instituições, é evidente que tudo já está quase completamente pobre, e o que surge de novo já traz velhice de podridão.

A própria República, como forma de governo, já ninguém mais reconhece, de tão bichada e repugnante.

E em derredor da moribunda é o que se vê…

É, no seio do exército, uma voz que impunemente proclama o direito de desmembrar o país… E no seio do Supremo Tribunal, a legitimação da anarquia… É, no seio  do Supremo Tribunal, a legitimação da anarquia… É um partido da mocidade sobre ombros quase centenários de uma ideologia de ópera bufa… É um partido democrático, e digno de estabelecer a sinonímia destes dois termos… E mais sobre esse montão de ruínas semoventes, os cantores para quem o dilúvio, já começado, ainda parece chuva miúda…

Pobre Brasil!!!

Mas porque nos restam ainda alguns homens capazes, algumas personalidades varonis e verdadeiramente donas do nosso passado política, creio que ainda se pode esperar alguma coisa dos dias futuros.

Que Deus tenha exalçado a palavra de Carlos Peixoto, e que de nada mais precisemos, realmente, do que de alguns homens, realmente, do algumas personalidades em que a inteligência não se tenha desenvolvido a custo da vergonha e do caráter.

Gazeta de Notícias, 01 de junho de 1927